podcast: Segunda Guerra

No link abaixo, comentário em podcast na Rádio Metrópole de Salvador sobre a “tecnológica” Segunda Guerra Mundial.

 

O comentário foi ao ar no dia 23 de junho.

 

 

 

http://www.radiometropole.com.br/objetos/audios/23-06-08_comentario_julio_pimentel_segunda_guerra_mundial.mp3

 

 

O tailleur cinza, de Andrea Camilleri

O tailleur cinza il tailleur grigio – é um romance sobre a velhice. Andrea Camilleri abriu mão da estrutura regular do policial, investiu bastante na construção psicológica dos dois personagens que se aproximam e se afastam no decorrer da trama e escreveu o mais francês de seus livros.

 

Luigi e Adele – nomes que evoca Pierre Louys, Guy de Maupassant e François Truffaut – formam um casal. Ele, bem passado dos sessenta anos, acaba de se aposentar. Ela, chegando aos 40, leva uma intensa vida social, correndo entre associações e reuniões. O narrador segue os passos de Luigi e, pelos olhos dele, reconstitui algo do passado: a bem sucedida carreira no banco, o primeiro casamento e o filho, a viuvez, o encontro com Adele, a paixão e a atração sexual súbitas, o casamento entre eles.

 

É a rígida rotina de Luigi, alterada pela aposentadoria, que o faz mirar o passado e relembrar a primeira vez que soube que a mulher o traía. Daí em diante, uma longa história de traições que, cauteloso, fingia não ver. Adele, afinal, era todo seu mundo e seu fascínio, mesmo depois que a relação entre eles perdeu as cores do princípio e passou a ser mais um item da rotina doméstica.

 

Aposentar-se, diz um clichê, é libertar-se. Aposentar-se, diz outro clichê, é morrer. Luigi, entre as duas possibilidades, prefere apenas olhar para sua mulher e entender seus jogos e artimanhas. La donna è mobile, diz uma ópera, e Luigi enxerga o exemplo em Adele, na sua obsessão pelo corpo e na fidelidade impossível. Um dia lhe pergunta, temeroso da resposta, sobre a razão dela ter-se casado com ele, e ouve uma peculiar e indireta confissão de amor. Simultaneamente, Adele mantém, no anexo de seu quarto, um sobrinho forte, belo e jovem, disponível para todas as noites: cual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero.

 

O drama de Luigi não é apenas íntimo. O mundo siciliano – como era de se esperar em Camilleri – o invade, sob a forma de uma obscura proposta de emprego e de sua hábil, mas honesta, relação profissional com supostos mafiosos. Também sua maneira de entender o que o cerca repõe as figurações sicilianas que Camilleri herdou de Vittorini, Verga, Lampedusa, Pirandello, Sciascia e tantos outros. Os diálogos se constróem e ganham significado nos olhares e no silêncio. Afetos e desafetos se definem nas pequenas relações quotidianas, enviesadas e recheadas de pequenos rituais de sedução e de engano.

 

Seu universo pessoal, porém, é o que prevalece e Luigi, aos poucos, se fecha. Ocorre que tudo, nele, espelha Adele, a personagem feminina melhor esculpida da obra de Camilleri. É linda, arrasadora e perigosa como muitas mulheres de Camilleri. É forte, segura e capaz de representar como outras tantas. Mas é também ambígua nos sentimentos e nas ações, nas verdades e nas mentiras, na infantilidade e na maturidade. Sempre um amabile leggiadro viso, in pianto o in riso è menzognera. Luigi espera unificar as duas Adele para negar que è sempre misero chi a lei s’affida, chi le confida mal cauto il core!

 

E, na porta da morte, tem uma revelação. Uma, não: duas. A primeira encerra a citação da ária: Luigi constata, reconciliado com Adele, com o passado e o presente que é impossível viver sem ela, afinal pur mai non sentesi felice appieno chi su quel seno non liba amore! E, em seguida, enxerga algo que justifica o título do livro – roupa que aparece poucas vezes no romance, mas nunca sai da cabeça do leitor.

 

O romance sobre a velhice de Camilleri – com seus 83 anos – não tem, felizmente, a diluição e a auto-complacência do que García Márquez escreveu pouco antes dos 80. Tampouco tem a densidade amarga e o rigor narrativo, uma pena, do de Philip Roth. Mas tem o que é essencial: o reconhecimento da duplicidade do tempo e de nossa complicada e irresolvida relação com ele.

 

Andrea Camilleri. Il tailleur grigio. Milão: Arnoldo Mondadori, 2008

 

Paisagens da Crítica já publicou comentários sobre outros oito livros de Andrea Camilleri: La pensione Eva (24 de março de 2006), La vampa d’agosto (12 de maio de 2006), Le ali della sfinge (22 de março de 2007), Il colore del sole (3 de maio de 2007), La pista di sabbia (1 de novembro de 2007), Maruzza Musumecci (3 de dezembro de 2007), Il campo del vasaio (12 de junho de 2008) e Le pecore e il pastore (19 de junho de 2008). Os seis primeiros estão no endereço antigo (www.paisagensdacritica.zip.net); o sétimo e o oitavo, neste mesmo endereço.

As ovelhas e o pastor, de Andrea Camilleri

As ovelhas e o pastor Le pecore e il pastore – é um livro ambicioso. Andrea Camilleri ousa mais em seus romances históricos – como este – do que nas aventuras do Coimissário Salvo Montalbano. Tem sentido: embora toda a obra de Camilleri seja bastante lida (é o escritor italiano da atualidade que mais vende na Itália e no exterior), os livros de Montalbano adquiriram bastante popularidade, chegaram às telas da televisão em cuidadosas adaptações e aumentaram muito seu público, incluindo leitores nem tão dispostos a acompanhar as experiências narrativas de Camilleri.

 

Apesar da diferença literária, as questões e preocupações de Camilleri nas tramas de Montalbano e nas históricas são semelhantes. A principal delas é com a leitura: cada vez seus personagens lêem mais e cada vez os livros são mais decisivos na decifração das histórias e seus mistérios. O recente Il colore del sole (de 2007), nesse sentido, é exemplar: está em jogo, ali, um suposto diário de Caravaggio, a ser lido pelo próprio Camilleri. Também o já clássico La scomparsa di Patò (de 2000), citado e lido por Montalbano no recente Il campo del vasaio, é composto de fragmentos de notícias e de documentos que tentam identificar o destino de Antonio Patò, que desapareceu – segundo observação de Leonardo Sciascia em A cada um o seu – quando fazia o papel de Judas numa representação da Paixão de Cristo. Em outro livro recente – Voi non sapete, de 2007 – verdade e ficção se misturam na leitura de bilhetes do chefe mafioso Bernardo Provenzano.

 

Le pecore e il pastore também reconhece que no princípio de toda escritura está a leitura. No caso, para compreender dois mistérios do verão de 1945: o que esteve por trás da morte de dez jovens religiosas – ovelhas enclausuradas num convento – e do atentado contra o bispo Giovanni Battista Peruzzo, pastor anti-comunista que defendeu, nos tempos sombrios do fascismo, justiça social e respeito à diferença. Os casos são reais; a documentação estudada por Camilleri (cartas, documentos oficiais, textos literários), nem sempre. A investigação retrocede ao século XII para entender o lugar do monastério em que o atentado se deu e sua história de ermitões e bandidos, de fé e perfídia. A solução dos casos, claro, pode não ser verdadeira, mas certamente é um achado. A relação entre literatura e história, de resto, é sempre conturbada e composta de diálogos e contaminações; ela pode prescindir de diferenciação se for colocada em uma base imaginativa, um livro de ficção. E Camilleri explora a ambigüidade até seu limite para ensinar que Noel Rosa e Pôncio Pilatos tinham razão ao dizer que a verdade existe, mas mora num poço. O leitor sedento de verdades absolutas fica, então, desorientado, perdido entre notas de rodapé e longas citações documentais: a sugestão falseada da precisão, embalada na narrativa ficcional.

 

Por esses jogos de sedução e engano é que Camilleri continua essencial. Perto de fazer oitenta e três anos e apenas quatorze após seu sucesso literário, escreve em ritmo acelerado, chega a publicar três livros num ano e mantém uma quase inacreditável capacidade de surpreender o leitor com narrativas divertidas e tantas vezes sofisticadas na concepção e no desenvolvimento. Às vezes, a surpresa vem até do fato do livro ser escrito inteiramente em italiano – caso de Le pecore e il pastore –, sem as interferências dialetais e as marcas da oralidade siciliana que particularizam quase toda sua obra e caracterizam a língua que inventou. Porque a novidade, às vezes, pode vir da tradição – depende da forma como a olhamos e a representamos.

 

Andrea Camilleri. Le pecore e il pastore. Palermo: Sellerio, 2007

 

 

Paisagens da Crítica já publicou comentários sobre outros sete livros de Andrea Camilleri: La pensione Eva (24 de março de 2006), La vampa d’agosto (12 de maio de 2006), Le ali della sfinge (22 de março de 2007), Il colore del sole (3 de maio de 2007), La pista di sabbia (1 de novembro de 2007), Maruzza Musumecci (3 de dezembro de 2007) e Il campo del vasaio (12 de junho de 2008). Os seis primeiros estão no endereço antigo (www.paisagensdacritica.zip.net); o sétimo, neste mesmo endereço. Na próxima semana, encerrando a “temporada Camilleri”, o blog publicará comentário sobre Il tailleur grigio.

Em busca de Klingsor, de Jorge Volpi, por Renato Prelorentzou

Em busca de Klingsor, de Jorge Volpi

 

por Renato Prelorentzou

 

No dia 10 de novembro de 1919, o New York Times estampava em primeira página o triunfo da Teoria da Relatividade de Einstein. Nessa mesma data, nascia Francis Bacon, não o célebre filósofo inglês que no século XVII revolucionou o pensamento científico ao lançar as bases do raciocínio dedutivo, mas um físico americano graduado em Princeton que, incorporado ao exército aliado, foi a Nuremberg analisar os depoimentos relacionados à pesquisa científica no III Reich. Em um mesmo 10 de novembro, 70 anos depois, Gustav Links, matemático da Universidade de Leipzig, colocou ponto final em seu relato, sua versão de como o acaso governou o século XX, o seu século. Ao fazer coincidir esses eventos, Jorge Volpi sinaliza os três eixos de Em Busca de Klingsor, o único de seus livros já publicado no Brasil: a nova ciência do século XX, a Segunda Guerra e a forma como a subjetividade e a incerteza transformaram o testemunho e a narração do passado.

 

Nascido na Cidade do México em 1968, graduado em Direito e Letras no México e na Espanha, Volpi escreveu nos últimos 15 anos dezenas de romances, contos e ensaios que lhe valeram diversos prêmios internacionais e publicações em dezenove idiomas. Em 1996, assinou com outros 5 jovens escritores mexicanos o Manifiesto Crack, que rompia com os fantasmagóricos localismos da banal literatura pós-mágica e procurava uma linha sucessória que ligasse seus signatários diretamente aos mestres do Boom e da literatura universal.

 

Volpi não se refere, portanto, ao México ou à América Latina. Ao contrário, a trama que conta pela voz de seu narrador passa-se na Europa do entreguerras e nas universidades norte-americanas; fala do mundo ordenado e promissor e do Armistício de 1918; da República de Weimar e do sentimento de revolta da juventude conservadora e patriótica; da busca pelas antigas tradições e da ascensão de Hitler. Descreve a Operação Valquíria, a Missão Alsos, o Projeto Manhattan. Explica também a Relatividade de Einstein, o Teorema de Gödel, a Teoria dos Jogos de Von Neumann, o Princípio da Incerteza de Heisenberg, as fórmulas de Planck, a Quântica de Bohr e toda a revolução científica que reverteu aquilo que até então era livre de conflitos na física clássica: o cientista já não era inocente, sua observação bastava para mudar a ordem do universo.

 

Entre o “Prefácio” e a surpreendente “Nota Final”, o livro de Volpi apresenta estrutura rígida e simétrica; cada um dos três “Livros” que o compõem inicia-se com três “Leis” que descrevem o Movimento Narrativo, o Movimento do Crime e da Traição, e termina com os atos da ópera de Wagner, onde Parsifal enfrenta Klingsor, o rei que simboliza o mal absoluto. Como um livro de história, Em Busca de Klingsor acumula datas, personagens e fatos reais, conta um sem-número de histórias que se articulam para dar coesão a seu enredo. Seu rigoroso realismo – amparado pela historiografia, pela bibliografia, pelos compêndios da física e da matemática –, no entanto, não quer transmitir certezas ou verdades: quer interpretar o século XX e entender as relações entre a ciência e a política, entre a falibilidade dos sistemas de conhecimento e a afirmação enganosa dos discursos totalitários.

 

Coerente com todo o enredo, o final do livro não oferece facilmente uma verdade exata, definitiva. O sentido do texto depende da interpretação aguda do leitor, de sua atenção aos indícios, da maneira como decifra o testemunho de Links sobre a busca de Bacon por Klingsor – não o demoníaco duplo do rei Amorfas no imaginário germânico, mas o suposto mandante de todas as pesquisas científicas do Nazismo. Assim, a experiência de Bacon – que se faz passar por historiador da ciência alemã e que compara sua investigação policial às suas pesquisas científicas – é compartilhada pelo leitor, e ambos são constrangidos a encarar verdades e identidades sempre fugidias, pois Jorge Volpi sabe que não há sentido fixo, que novas leituras trarão novos significados. Na fronteira entre ficção e história, Em Busca de Klingsor é uma aula de ciência, de história e de como a ficção pode reinventar-se a cada momento para pensar o passado.

 

Jorge Volpi. Em busca de Klingsor. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (original: 1999; tradução: Sergio Molina)

 

Renato Prelorentzou é mestre em história social pela USP e pesquisa a obra do escritor mexicano Ignacio Padilla. Já publicou, em Paisagens da Crítica, comentário sobre Palomar, de Italo Calvino (27 de maio de 2007, no endereço antigo: http://paisagensdacritica.zip.net) e, já neste endereço, sobre Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu, de Julián Fuks (18 de abril de 2008).

 

 

O campo do oleiro, de Andrea Camilleri

O campo do oleiro – Il campo del vasaio – não é a melhor, mas talvez seja a mais tocante história do Comissário Salvo Montalbano, detetive criado pelo siciliano Andrea Camilleri.

Montalbano chega cada vez mais cansado a seu décimo-terceiro romance – fora os trinta e seis contos e as três novelas. O tempo passa e pesa para ele: tem agora 58 anos e os rumos da política e da polícia o desiludem. Vê o mundo sombrio e acredita pouco na justiça. Se não bastasse, atravessa uma história de traições, indicadas já no título do livro: o campo do oleiro, conta o Evangelho de Mateus, é onde foram gastas as trinta moedas do Judas arrependido. E num campo assim encontram um cadáver despedaçado em trinta partes, levantado da lama pelas chuvas.

Camilleri domina como poucos, na atualidade, os mecanismos do policial: conhece as matrizes clássicas do gênero, deprecia sutilmente a vertente americana e inventa novos caminhos para a escrita de mistério. Em parte, o policial moderno de Camilleri é herdeiro de Leonardo Sciascia, outro siciliano, escritor do que Italo Calvino chamou de “gialli non gialli” – policiais não policiais. Tal qual em Sciascia, a verdade para Camilleri não é absoluta ou decisiva e nem sempre vem e fica à tona. Algumas de suas versões, sim. É em busca delas – verdades relativas, consensuais – que seus detetives vão, cruzando um mundo insalubre, recheado de velhos e novos mafiosos, de políticos inescrupulosos. Também à semelhança de Sciascia, é o silêncio da Sicília, seus não-ditos e os olhares eloqüentes que, juntamente com a forte entonação oralizada da língua, dão especificidade e dinâmica para a trama e seu desvendamento.

Se o campo do oleiro simboliza uma traição, a original, muitos são os traidores, e de diversos tipos, que circulam ao redor dessa narrativa sombria, que combina assassinatos em mais de um tempo, vinganças e falsos testemunhos. Há traição conjugal, traição à famiglia mafiosa, traição a si mesmo e a que parece pior aos olhos de Montalbano: a da confiança entre amigos. É Mimì Augello quem está na baila e cuja amizade longa parece em risco. Mimì é o vice-comissário de Montalbano e, após ter ganho destaque em várias histórias, andou meio sumido nos três últimos romances. Agora volta à baila e obriga Montalbano a investigar secretamente o homicídio do campo do oleiro e seus desdobramentos do passado e no futuro.

O método de Montalbano nunca foi sherloquiano, linearmente lógico. Ao contrário: Camilleri já o descreveu como semelhante aos ramos cruzados de uma oliveira, intrincado, confuso, caótico, às vezes intuitivo, sempre crivado de variações e, na sua teatralização, de conversas consigo mesmo. A diferença agora é que Montalbano se põe a escrever e é no texto – em longas cartas a si mesmo – que estrutura sua pesquisa e percebe as razões que ligam e justificam as pistas. Nenhum escritor, porém, pode existir se antes não houver um leitor; e Montalbano, para redigir sua versão, antes lê, e lê um Camilleri: La scomparsa di Patò, que já é, por si mesmo, um diálogo com livros anteriores e o desenvolvimento da trajetória de um personagem ficcional de Sciascia. Do universo da leitura e pelo fio da escrita, a decifração.

O sentido é obviamente metaliterário, mas sem qualquer peso para o leitor comum, que pode escolher o nível de leitura que prefere, do entretenimento rápido ao reconhecimento das muitas instâncias narrativas que Camilleri conjuga para dar mais complexidade a seu personagem famoso e variar suas histórias. Também cabe ao leitor entender e avaliar a forma peculiar como Montalbano desenreda a teia de traições e repõe as relações em seus devidos lugares. Emocionalmente. Sobretudo silenciosamente, que é como os sicilianos tratam as coisas importantes.

Andrea Camilleri. Il campo del vasaio. Palermo: Sellerio, 2008

Os treze romances protagonizados por Salvo Montalbano são: A forma da água (1994 – no Brasil, 1999), O cão de terracota (1996 – no Brasil, 2000), Ladrão de merendas (1996 – no Brasil, 2000), A voz do violino (1998 – no Brasil, 2001), Excursão a Tindari, (2000 – no Brasil, 2002), O cheiro da noite (2001 – no Brasil, 2003), Il giro di boa (2003 – no Brasil, Guinada na vida, 2005), La pazienza del ragno (2004), La luna di carta (2005 – no Brasil, A lua de papel, 2007), La vampa d’agosto (2006), Le ali della sfinge (2006) e La pista di sabbia (2007). Além desses, há quatro volumes de narrativas curtas: Um mês com Montalbano (1998 – no Brasil, 2002), Gli arancini di Montalbano (1999), La paura di Montalbano (2002), La prima indagine di Montalbano (2004 – no Brasil, 2008).

Provavelmente a tradução brasileira deste livro demore. Das treze aventuras de Montalbano, como se pode ver acima, já foram traduzidos as sete primeiras e a nona, pulando – sabe lá Deus por quê – a oitava (A paciência da aranha). Além deste, ainda faltam traduções de O calor de agosto, As asas da esfinge e A pista de areia para que se chegue a O campo do oleiro.

Paisagens da Crítica já publicou (no endereço antigo: www.paisagensdacritica.zip.net) comentários sobre outros seis livros de Andrea Camilleri: La pensione Eva (24 de março de 2006), La vampa d’agosto (12 de maio de 2006), Le ali della sfinge (22 de março de 2007), Il colore del sole (3 de maio de 2007), La pista di sabbia (1 de novembro de 2007) e Maruzza Musumecci (3 de dezembro de 2007). Nas próximas semanas, publicarei comentários sobre mais dois livros de Camilleri: Le pecore e il pastore (2007) e Il tailleur grigio (2008).

Ventos de quaresma, de Leonardo Padura Fuentes

Ventos de quaresma é livro difícil de resenhar. Não é ruim, não é mal feito. Ao contrário: cumpre plenamente o que promete e entretém o leitor, que se interessa pelos personagens, pelas descrições de ruas e paisagens habaneras, pela trama em torno do assassinato violento de uma jovem professora de química. Também os diálogos entre o investigador Mario Conde e seu amigo Magro Carlos são divertidos, assim como as comidas tipicamente cubanas de Josefina, mãe do Magro, que os leva ao delírio quando acompanhadas de umas garrafas de rum. Ventos de quaresma traz, ainda, um bom coquetel de crimes, além do assassinato: tráfico de drogas e de influência, contrabando, sugestão de pedofilia.Tem até uma ruiva atraente, Karina, por quem o Conde se apaixona e com quem ele se deita em cenas picantes – reais ou imaginárias. Ou seja, não dá para reclamar de um livro assim.

No entanto, Ventos de quaresma não é tudo isso; é só isso: a seqüência bem feita de um padrão batido de livro policial. Seu enredo daria um bom conto. Mas Leonardo Padura Fuentes optou pelo romance, recheou a história de adjetivos e de advérbios e o livro passou das duzentas páginas. Em alguns momentos, ensaiou um vôo mais longo e quase variou a voz narrativa. Quase, porque, na verdade, apenas expandiu a fala de algum personagem, mantendo o narrador onisciente em terceira pessoa. As lembranças do passado de Conde também aparentam, vez ou outra, indicar que há uma reflexão por trás do relato do crime e de sua decifração, e o leitor fica na expectativa de um adensamento da narrativa, mas ele não acontece. Talvez faça parte da vontade do leitor, ainda, a crença de que as duas histórias (a da paixão pessoal de Conde por Karina e a da investigação) se cruzem em algum momento – e de novo ficamos a ver navios, porque o desfecho de ambas é desconectado e, sobretudo, decepcionante.

Alguém poderia dizer que o policial de Padura Fuentes tenta fazer a crônica da Havana deteriorada após tantos anos de descaso da ditadura castrista. Só que a crônica – se existe – se resume à constatação da miséria e dos fracassos individuais. Nada além. Crítico, mas nem tanto. No esforço de valorizar o romance poderíamos, finalmente, lembrar que completa a série “As quatro estações”, composta por Passado perfeito, Máscaras e Paisagem de outono, e é superior aos outros três – verdade que serve menos para o elogio a Ventos de quaresma do que para a crítica aos demais.

Mas, claro, nada disso tira o mérito de Ventos de quaresma – mérito que esse comentário ligeiramente esquizofrênico parece não reconhecer. O que certamente desconforta o leitor – sujeito idiossincrático – é precisamente a insipidez do volume. Tudo o que ele poderia ser e não é. As comparações com outros autores e obras atuais, que movem o policial de forma a tirá-lo do mundo pequeno do entretenimento baldio. A lembrança de que Cuba já teve ficcionistas fabulosos, como Lezama, Piñera e Cabrera Infante, e hoje tem que se contentar com Padura Fuentes. Ou, pior, com Pedro Juan Gutiérrez, outro mestre da repetição e cultor da fartura adjetivesca e da crítica legitimadora.

Por isso é difícil de resenhar. Como falar que é bom como um big mac e ruim como um big mac? Seria até um trocadilho infame compará-lo com o sanduíche globalizado, igual em toda parte, resultado de uma receita una e repetida. Logo um cubano, tão diferente e peculiar. Ou será que os cubanos diferentes e peculiares caíram no ostracismo e só restaram os modelos-para-exportação?

Leonardo Padura Fuentes. Ventos de quaresma. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (original: 2001; tradução: Rosa Freire D’Aguiar)

The Arrival, de Shaun Tan, por Stefania Chiarelli


Retratos em preto e branco

por Stefania Chiarelli

 

Este texto já parte de um pressuposto contraditório: o de se valer de palavras para dialogar com uma obra que utiliza apenas imagens. Mas, à diferença do desenhista australiano Shaun Tan, preciso delas para comentar o forte impacto que a obra The Arrival me causou. Publicado em 2007 nos EUA, vencedor de vários prêmios, o livro conta a história de um habitante de um mundo fictício, que deixa temporariamente sua família em outro país e parte em busca de nova vida em outro continente. No novo lugar, vai enfrentar uma língua desconhecida, hábitos incomuns, estranhos animais de estimação e uma legião de outros imigrantes que, como ele, chegaram ali pelos mais diversos motivos, buscando refúgio e um futuro menos opressor. The Arrival é uma fábula sobre um homem que deixa sua família para trás e cruza o mar, na esperança de encontrar trabalho e uma vida melhor para sua esposa e filha. Perdido em um mundo onde não consegue falar ou ler, passa a perseguir o sonho de todos os imigrantes: um lugar para se estabelecer junto a indivíduos que, por diversos motivos, se encontram fora de seus locais de origem.

Nos escritos de Minima moralia, Theodor Adorno chama a atenção para o apagamento de parte da vida pregressa do imigrante, forjada sob a rubrica de “antecedentes” registrados em uma ficha fadada ao esquecimento . Do desejo que a figura do imigrante não se restrinja, como alerta o filósofo alemão, a esmaecidas registros destinados ao desaparecimento, prepondera em algumas obras o gesto de recuperar a enunciação desses discursos, tornando-os produtivos, dinâmicos. É esse pensamento que me ocorre ao abrir as primeiras páginas – propositalmente amareladas, simulando o envelhecimento de antigos documentos – da obra de Shaun Tan. No lugar da costumeira ficha catalográfica – espaço dos livros em que se confere a primeira classificação, espécie de carteira de identidade – lemos a palavra “inspeção”, anunciando tema tão familiar a todo aquele que emigra. O termo é forte, e a idéia de vistoria, fiscalização, já prenuncia o tema do exílio.

Classificado como infantil, o livro não se reduz a uma fábula edulcorada ou revela qualquer pretensão didática. Ao contrário, Shaun Tan aborda temas contemporâneos como o totalitarismo, o trabalho infantil, a incomunicabilidade e a opressão. Uma história em quadrinhos de cento e vinte páginas desenhadas com lápis grafite, sem o apoio de nenhum texto. O leitor vai acompanhando uma espécie de seqüência de antigas fotos em tons sépia e preto-e-branco, como se participasse da recordação de uma história vivida há muito tempo. Lá estão ícones clássicos da representação da migração, como a cena de milhares de pessoas entulhadas em uma embarcação – mar, porto e navios são elementos altamente significativos no imaginário daqueles que partem. Ao mesmo tempo, comparecem outras representações com alto poder metafórico, como na sequência em que o migrante tenta inutilmente se fazer entender, se valendo da mímica para facilitar a comunicação, ou ainda aquela em que é examinado, catalogado e finalmente recebe um papel que lhe confere nova identidade. Alternam-se closes dos indivíduos e grandes panorâmicas, cruzando uma história pessoal com quadros humanos reveladores desses movimentos populacionais.

Relatos de imigrantes de diferentes países, quadros, desenhos e fotografias do acervo do Museu da Imigração de Ellis Island, em Nova York, serviram de base para o trabalho de Tan. Um dos inspiradores do livro foi o próprio pai do autor, que se mudou para a Austrália nos anos 60. A história do meu pai foi parte da inspiração para The Arrival, porque ele imigrou da Malásia. Sobretudo, o tema pareceu enormemente interessante como um exercício conceitual, tive que rever todo o mundo à minha volta, percebi que os imigrantes estão ainda por todos os lados, tentando se adaptar e lutando por seu espaço“, explica.

Histórias de errância e deslocamento já renderam obras clássicas na história da humanidade. Shaun Tan revitaliza essa linhagem de narrativa, explorando novo modo de simbolizar a experiência de se estar entre culturas, em trânsito. Apesar de tingir com cores sombrias e detalhar o aspecto doloroso dessa experiência, Tan enfatiza a possibilidade de recomeço, da libertação entrevista nessa história. O estabelecimento de laços de solidariedade entre indivíduos em situação semelhante aponta para uma visão positiva desse estado de deslocamento, enfatizando que a condição de estrangeiro, a despeito da dor e do trauma, é capaz de viabilizar o diálogo. Encerra o livro a imagem da filha do protagonista, já instalada no novo lugar, prestando ajuda a uma recém-chegada. Apesar do suposto final feliz – a família se reúne novamente – o ciclo não tem fim, e uma nova leva de pessoas está a caminho. Entretanto, os elos entre os indivíduos ainda podem oferecer vínculos que mitiguem o desenraizamento. Afinal, migrar é também se reinventar.

Stefania Chiarelli é doutora em Estudos Literários pela PUC-Rio e autora de Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (Annablume, 2007).

 

Paisagens da Crítica já publicou comentários sobre dois livros de Stefania Chiarelli: Vidas em trânsito as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (7.5.2007) e Alguma prosa (21.8.2007, organizado juntamente com Giovanna Dealtry e Masé Lemos). Stefania também já publicou uma resenha em Paisagens da Crítica: sobre Jóia de família, de Zulmira Ribeiro Tavares (31.3.2007). Os três textos estão no endereço antigo: http://paisagensdacritica.zip.net