Fantasma sai de cena, de Philip Roth

Fantasma sai de cena não é o melhor livro de Philip Roth. E não sei se Roth é superior a outros judeus americanos (ou quase), como Saul Bellow ou Bernard Malamud. Também tenho quase certeza de que ele não é meu escritor preferido (se é que consigo definir quem é: Proust? Borges? Naipaul?).

 

 Mas sei uma coisa: se eu fosse ficcionista, queria escrever como Roth. Queria fazer um livro aparentemente sem grande pretensão – caso desse Fantasma sai de cena – e ainda assim conseguir um livro excelente, superior a 99% do que se escreve por aí.

 

Porque Roth concilia temas imprescindíveis, personagens densos, algo de discussão filosófica e de balanço dos dias vividos. Tudo embalado numa ficção milimetricamente planejada e executada com a precisão de quem domina língua e técnica narrativa.

 

Em Fantasma sai de cena, reencontramos Nathan Zuckerman, que já protagonizara outros romances de Roth. Zuckerman tem agora 71 anos, vive isolado no campo, atravessou uma operação de câncer na próstata – e dela resultou uma constrangedora incontinência urinária. Vai à Nova York para tentar amenizar o desconforto e resolve ficar por lá. Duas mulheres aparentemente o movem de volta à cidade que ainda não se recuperou do onze de setembro: uma que encontrou no passado e outra, recém conhecida. Nenhuma delas lhe pertence. Amy, no passado, foi casada com seu tutor e ídolo literário; hoje está morrendo, devastada pela doença. Jamie é o presente, acaba de chegar aos trinta e é irresistível. Teme novo atentado terrorista e, com o marido, propõe a Zuckerman uma troca provisória de residência.

 

Simétricas e inacessíveis, Amy e Jamie, de nomes rimados, revelam a dificuldade de Zuckerman lidar com seu passado e com o alheio, a dificuldade de tolerar o presente – salvo quando está fechado num mundo de livros, afastado das gentes. São também o mote para Roth comentar a selvageria do mundo literário e a rapacidade e as imposturas biográficas de jovens escritores. Um deles pretende escrever a biografia de Lonoff – o tutor de Zuckerman e ex-marido de Amy. E para tanto ultrapassa limites éticos. Zuckerman o rejeita e se pergunta: o que, afinal, narramos? Registramos o que aconteceu ou o que poderia ter acontecido? Quantas vidas há numa biografia e quantas ficções, numa narrativa?

 

Qualquer resposta, claro, é insuficiente. Há uma zona de sombra que penetramos ao narrar – e ao lembrare ao ler. Como as viagens e os relatos de Conrad, inspiração fundamental do livro de Roth. Como no lamento que Borges anotou em “Le regret d’Heraclite”: somos muitos homens diferentes, mas nunca o que queríamos ser.

 

E assim – para falar da velhice de um escritor e de seus fantasmas presentes e passados, de seus medos e limitações, tentações e possibilidades – Roth fala da literatura. Sem mistificação, fala das infinitas mistificações de um texto. Por isso – que parece simples, mas é difícil para cachorro – que eu queria escrever como ele. Ilusão, claro.

 

Philip Roth. Fantasma sai de cena. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (original: 2007; tradução: Paulo Henriques Britto)

O verão do Chibo, de Vanessa Barbara e Emilio Fraia

O verão do Chibo é um exercício de estilo. Seus dois autores – Vanessa Barbara e Emilio Fraia – buscam uma dicção fluida, um narrador que mantenha o ritmo nas descrições, que enxergue de fora e, ao mesmo tempo, atue e fale como um dos participantes dessa história de crianças que crescem e, ao crescerem, mudam de lugar, de condição, de mundo.

 

Às vezes, o leitor se sente em meio a uma quadrilha ou a uma brincadeira de roda, em que os pedaços da infância voltam e se combinam, dançam entre si, trocando de mãos e de pares, sem perder o modo fragmentário de quem lembra e sabe que, do passado, fica mais ausência do que resíduos, embora a memória às vezes nos persiga, idéia fixa, como mosca teimosa que insiste em pousar.

 

Chibo é o irmão mais velho e desaparecido do narrador, que percebe outros sumiços na ciranda do crescimento. Chibo é o advento desconfortável da maturidade. Não importa se o Chibo é real – para o narrador, para o leitor. Nem se suas aventuras, detalhadas na fala do mais moço, de fato aconteceram como são contadas. Chibo é tudo que se pode querer como irmão e modelo: forte, protetor, sabido; é aquele que possui a figurinha rara e lidera o universo em que vivem os personagens da história; conhece a zona proibida e ensina a respirar – literal e metaforicamente.

 

Por isso, sua ausência rodeia o narrador como a corda na garganta, o mar ao que se afoga. A perda é sentida no presente, que move a memória e preenche – com a sensação do hoje – os intervalos do passado lembrado. A saga quotidiana e infantil do narrador atravessa, assim, as referências que podem ajudá-lo a compreender o que o irmão foi e o que ele, pequeno-quase-grande, pode vir a ser. Para tanto, aparecem, aqui e ali, sinais do cinema e dos quadrinhos – de super-heróis a Calvin & Haroldo, de um mundo recheado de onomatopéias e de (nem sempre necessários) trocadilhos. Porque se é verdade que só crescemos quando esconjuramos os fantasmas da infância, é também inevitável que retomemos os verões com Chibo para chegarmos ao verão do Chibo – que, na verdade, é o verão sem Chibo: são os tempos-territórios que podem nos justificar, que podem ficar mesmo quando a infância se desfizer. Quando o novo lugar do Chibo e dos outros for compreendido, a ausência,essa ausência assimilada, ninguém a roubar mais do narrador.

 

Embora haja algum excesso no livro (principalmente nas citações e repetições), os autores conseguem manter o ritmo e a fluidez do relato e lidam bem com as variações de registro, passando do mosaico de cultura pop a um lirismo que não chega a ser declarado, mas tampouco é envergonhado. Certamente é o argumento sólido, associado ao assumido contorno cinematográfico da narrativa, que assegura a força do romance e mostra que Barbara e Fraia não se limitam – como tantos, hoje em dia – a fazer joguinhos de códigos para que os amigos decifrem.

 

Vanessa Barbara e Emilio Fraia. O verão do Chibo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008

Seis problemas para Don Isidro Parodi e Duas fantasias memoráveis, de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares

Seis problemas para Don Isidro Parodi e Duas fantasias memoráveis são duas das poucas obras do argentino Honorio Bustos Domecq, um dos maiores escritores latino-americanos do século XX. Se você, leitor, nunca ouviu falar dele é porque Bustos Domecq foi pouco publicado no Brasil: apenas os Seis problemas já haviam sido (mal) traduzidos por aqui, em edições hoje esgotadas.

 

Ou talvez seja porque Bustos Domecq nunca existiu. Foi um pseudônimo utilizado pelos dois principais escritores argentinos, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, para escrever histórias que circularam principalmente entre amigos e outros escritores. Borges & Bioy eram amigos próximos e a parceria literária começou meio por acaso. Os dois se conheceram no início da década de 1930 e, a despeito da diferença de idade (Borges tinha 30, Bioy, 17), se deram muito bem. Uns quatro anos depois, um tio de Bioy, Miguel Casares, encomendou ao sobrinho um folheto publicitário para o iogurte que a leiteria dos Casares, La Martona, produzia. O trabalho era bem pago (16 pesos por página). Bioy disse a Borges que não tinha competência para escrever sozinho e o convidou para que escrevessem juntos. Segundo Borges, foi uma generosidade de Bioy, que precisava menos do dinheiro do que ele.

 

Os dois foram para uma casa de campo e, em meio a um frio terrível, se refugiaram na cozinha próximos ao forno e se encharcaram de chocolate quente, “tão espesso que a colher pousava em sua superfície”. Como o pagamento era por página, trataram de escrever bastante: fizeram quase vinte páginas de um folheto com aparência científica, em que exaltavam as qualidades do iogurte, especialmente sua capacidade de prolongar a vida de quem o tomava. Para sustentar a tese, relataram que sua receita vinha da Europa Oriental e fora criada por um casal para alimentar seus muitos filhos. Estes, por terem tomado a bebida por toda a vida, se tornaram centenários. Todos menos uma filha, corrigiam, que morrera depois dos 90…

 

Iniciavam uma colaboração que duraria mais de quatro décadas. Logo depois do folheto do iogurte, ensaiaram escrever um poema. O resultado, segundo ambos, foi péssimo. Mas a iniciativa seguinte, a criação da revista Destiempo, teve um breve sucesso (três números). Daí em diante, as aventuras literárias em conjunto se diversificaram: antologias de poesia argentina, de contos fantásticos e de histórias policiais, prefácios, traduções e comentários a outros autores, roteiros de cinema (alguns, inclusive, chegaram às telas).

 

Em 1942, apareceu o resultado mais conhecido da parceria: a coletânea de contos policiais Seis problemas para Don Isidro Parodi. O pseudônimo Honorio Bustos Domecq reunia um bisavô de Borges (Bustos) e um de Bioy (Domecq) – dupla identidade que só foi revelada muito tempo depois. Bustos Domecq ainda assinou outros três livros – inclusive Duas fantasias memoráveis, de 1946 e agora finalmente publicado no Brasil. As histórias relatavam as atividades de Don Isidro Parodi, talvez o único detetive que soluciona os casos de dentro da cela em que está preso.

 

Para contar as histórias de Parodi, Borges e Bioy utilizaram também o pseudônimo B. Suárez Lynch – novamente uma mistura de antepassados (Suárez, de Borges; Lynch, de Bioy) precedida pelo “B” inicial do sobrenome de ambos – e com ele assinaram, ainda em 46, Um modelo para a morte. Independentemente do nome com que assinavam as edições, o que caracterizou a colaboração entre eles, porém, foi a profunda afinidade: de leituras, de preocupações intelectuais e literárias e, num certo sentido, de humor. Afinal, ambos relataram que os encontros para escrever eram marcados por muitas gargalhadas.

 

Curioso é que a crítica demorou muito para reconhecer o caráter decisivo que os textos da parceria tiveram nas obras futuras de ambos – apesar de Bioy e Borges terem alertado, mais de uma vez, que ali não havia apenas brincadeira: eles transferiram marcas da experiência de colaboração para suas obras pessoais. A pouca importância dada até recentemente para a parceria é a provável responsável pela demora na maior divulgação desses livros. E, no caso brasileiro, pela hiper tardia edição do conjunto completo dos textos escritos a dois. Num país que conta com mais de uma tradução dos principais livros de Borges e duas edições de suas obras completas, finalmente sua obra em colaboração começou a ser traduzida e publicada. Não serão apenas os textos escritos com Bioy, mas são estes que abrem a coleção (nos próximos meses sairão mais dois livros Borges-Bioy), coordenada por Jorge Schwartz e com ótima tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. O volume conta, ainda, com um excelente prefácio de Michel Lafon, que analisa o trabalho da parceria e introduz o leitor no mundo de Bustos Domecq.

Assim, os leitores brasileiros podem finalmente descobrir que Honorio Bustos Domecq pode até não ter existido, mas foi um tremendo escritor.

 

 

Jorge Luis Borges & Adolfo Bioy Casares. Seis problemas para Don Isidro Parodi. Duas fantasias memoráveis. São Paulo: Globo, 2008 (originais: 1943 e 1946; tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro)

 

Parte desse texto foi publicada na revista Entrelivros número 14, de junho de 2006, sob o título “Com Bioy, amizade literária”.

 

Paisagens da Crítica nunca trouxe comentários sobre livros de Borges, mas publicou sobre outros três livros de Adolfo Bioy Casares: A invenção de Morel (3 de dezembro de 2005); Histórias fantásticas (10 de dezembro de 2006); Borges (9 de abril de 2007). Estes comentários estão no endereço antigo: http://paisagensdacritica.zip.net

Nesta cidade e abaixo de teus olhos, de Annita Costa Malufe

Nesta cidade e abaixo de teus olhos conversa com quem? Annita Costa Malufe prossegue seu diálogo poético de Fundos para dias de chuva e continua a intrigar o leitor, que fica à espera da revelação: a quem os versos se dirigem? Qual é o mundo – povoado – em que circulam?

 

À primeira vista, a resposta parece fácil: Annita conversa com outra poeta, Ana Cristina Cesar. Afinal, a influência de Ana C. é forte, clara, assumida, e transborda o trabalho poético de Annita: Ana C. foi também objeto de suas pesquisas acadêmicas. Outra explicação fácil é encerrar o diálogo no próprio livro e reconhecer sua entabulação com a ilustração cuidadosa, de Silvio Ferraz, que acompanha os poemas na pequena e bem cuidada edição. Mas há mais personagens nesta cidade literária. Personagens, não vozes. Porque a voz é sempre una, embora possa ocasionalmente se travestir. É um narrador – na verdade, uma narradora, porque o traço feminino é forte – que expõe sua intimidade e contempla, perscruta, indaga o que a cerca.

 

É inevitável, nesse itinerário pessoal, que a entonação seja lírica. Mas não é o lirismo funcionário público, com cartão de ponto e paletó-na-cadeira: é aquele que vem combinado com a porosidade da poesia; por isso, aceita invasões, recebe visitas insistentes de outras obras e outros autores. Exerce a crítica como paisagem: o ambiente – disse Lezama Lima – em que o espaço e o tempo se reúnem, onde podemos reagir à barbárie dos desafetos para refundar a experiência e o olhar pessoais. Daí ser tão complicado identificar o interlocutor dessa poesia: ele está tão entranhado no olhar, que conduz e é conduzido, que se torna impossível discernir “influências”, “reescrituras” ou mesmo “desdobramentos” – termo que agradaria mais à poética de Annita do que os anteriores.

 

Poesia, vale lembrar, não deixa de ser representação e, assim, indica certa ausência e oferece uma presença, alterada, desviada. E, no jogo de representar, a capacidade que em geral sobressai é a de assimilação: o quanto somos capazes de absorver e traduzir em signos próprios a experiência histórica e literária que nos rodeia e de que nos sentimos herdeiros – mesmo que nenhum testamento assegure a linha de projeção. E a intensidade da poesia de Annita vem exatamente da delicadeza como assimila, sem cair no entorpecimento das citações desmedidas, registros poéticos de inúmeras origens: do prosaísmo de um Paulo Henriques Britto às teorias de Blanchot ou Derrida, da fantasia cortazariana aos labirintos de Beckett. O interlocutor não-mencionado ressurge, então, duplicado no tom confessional de Annita, e a ausência – essa ausência assimilada, já falou Drummond sobre Ana C. – ninguém rouba mais de sua poesia.

 

Por isso, Annita C. não é apenas uma pequena Ana C.: o vigor de sua conversação, as dedicatórias que ora individualizam, ora pluralizam o leitor e o fio da lâmina que separa o urbano, público, do território convergente da intimidade permitem que os olhos do título não sejam só os do próximo, teu, mas o da voz mesma que fala e, porosa, assume como seu o que é comum e incomum.

 

Annita Costa Malufe. Nesta cidade e abaixo de teus olhos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008

 

Paisagens da Crítica comentou outros dois livros de Annita Costa Malufe: Fundos para dias de chuva (17 de junho de 2006) e Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (1º de julho de 2007). Os dois textos estão no endereço antigo: http://paisagensdacritica.zip.net