Um lugar perigoso é o décimo-primeiro romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza e, sem dúvida, o melhor.
Num país de precária tradição na literatura policial, Garcia-Roza estreou tardiamente na ficção e logo impôs seu estilo e um personagem complexo: o delegado Espinosa. Ele surgiu em O silêncio da chuva, de 1996, e, de lá para cá, reapareceu em outros nove livros.
Errático na forma de agir e de pensar, Espinosa vaga e divaga pelas ruas de Copacabana, enquanto enfrenta tramas que se enraízam nos dilemas cariocas e, quase sempre, se agravam conforme a polícia intervém. Espinosa é um detetive parcialmente estranho ao universo do policial clássico ou do hard boiled: nem tão racional e analítico quanto um Dupin ou um Holmes, bem distante do aventureirismo profissional de Op, Spade ou Marlowe.
Embora os livros de Garcia-Roza oscilem na densidade e na qualidade da trama e da escrita, Espinosa sempre persistiu no centro das atenções. Só que isso não acontece em Um lugar perigoso. Aqui, o delegado é coadjuvante e o protagonista é um professor universitário aposentado, Vicente Fernandes, portador de doença que afeta a memória e que o faz viver imerso num profundo e obscuro mar de esquecimentos.
Desde o primeiro capítulo —talvez o melhor já escrito por Garcia-Roza—, o leitor se aproxima de Vicente e de seu drama: na ausência da memória próxima e distante, ele constrói uma ficção do passado e do presente, que ocupa as fendas irrecuperáveis das lembranças.
Aos poucos, outros atores entram em cena: Paula, antiga colega e quase namorada; Anita, vizinha curiosa; os inspetores Ramiro e Welber, habituais auxiliares de Espinosa; o próprio delegado. Mas é o olhar do professor que nos guia na maior parte do livro. Ocasionalmente, é Paula; outras vezes, é Anita; em certos trechos, é Espinosa. Jamais, porém, o foco se desvia de Vicente —inclusive porque o leitor de policiais, já disse Borges, é desconfiado e hesita em reconhecer a voz que fala, duvida que a perspectiva tenha de fato variado e ultrapassado a linha do horizonte do professor.
Vicente Fernandes, desde a aposentadoria precoce e compulsória, provocada pela síndrome da memória, tornou-se tradutor. Não por acaso, agora traduz os contos de Poe e eles ressoam passo a passo na sua vida, alimentam diretamente a imaginação desesperada, ocupam os espaços carentes de lembranças. Vicente, na verdade, radicaliza uma prática que é de todos, a da fabulação: ele vive o sonho de inventar presentes e passados. Diferente da maioria de nós, porém, encara também o pavor de não saber se de fato os consumou, e a angústia de não apenas esquecer, mas de saber que sempre esquecerá, inclusive, que esqueceu. Como tradutor, ainda, assume uma ambiguidade: recria universos alheios —por meio da interpretação e do deslocamento de uma língua a outra—, mas jamais se diferencia totalmente do texto que reescreve, mantém o vínculo com um passado que não lhe pertence.
Também foi Borges, sempre ele, que afirmou que “Só uma coisa não há, o esquecimento”, e Vicente é pródigo em esquecer. E Garcia-Roza aproveita-se da angústia de seu personagem para fazer a narrativa avançar, vertiginosa, na direção dos limites e das fronteiras, sempre instáveis, entre a lembrança e a verdade, entre o presente e o passado, entre a sanidade e a desrazão, entre a verdade e a ficção: os personagens —sobretudo Vicente e Anita— falam a verdade de maneira tão plena, tão cabal, tão definitiva, que é difícil acreditar no que dizem. Espinosa acompanha tudo à prudente distância, envolve-se com restrições no caso, desconfia: ele é tão leitor quanto qualquer um de nós.
A narrativa policial já foi descrita como a busca da verdade e a tentativa de restabelecer a ordem —algo que ela foi um dia, mas deixou de ser faz tempo. Garcia-Roza, em Um lugar perigoso, enterra, na areia de Copacabana, qualquer ilusão que tenhamos sobre revelações e estabilidade: no emaranhado das anotações do professor Vicente, por trás dos jogos de observação entre ele e Anita ou de sua irregular relação com Paula, não há qualquer verdade possível, nem a ordem retornará.
E está aí a sofisticação e a profundidade deste livro: ele recorre às estratégias do policial para expor sua insuficiência e, melhor, sua amplitude; para desmascarar a forma banal como o gênero tantas vezes foi e é tratado e para mostrar que, mistificada ou não, a vida e a verdade são sempre porosas à ficção.
Luiz Alfredo Garcia-Roza. Um lugar perigoso. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Paisagens da Crítica já resenhou outros quatro livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza:
— Berenice procura (30.11.2005);
— Espinosa sem saída (15.12.2006);
— Na multidão (26.12.2007);
— Céu de origamis (8.12.2009).
Clique nos títulos dos livros para ler as resenhas.
Que bom que voltaste a escrever aqui. Agora de “férias” da vida acadêmica posso voltar a ler literatura, e é sempre bom ter indicações 🙂 Abraços
por sua indicação eu li o silêncio da chuva que comentei aqui faz um tempinho e mencionei vc. mas não li nenhum outro. embora tenha gostado desse. beijos, pedrita http://mataharie007.blogspot.com.br/2013/10/o-silencio-da-chuva-de-luiz-alfredo.html
Uau. Excelente crítica professor. Vou ler o livro imediatamente.
Buca,
tudo bem?
Aproveite essa oportunidade de leituras livres, são sempre as melhores.
Abraços,
Júlio
Pedrita,
tudo bem?
Garcia-Roza é sempre interessante; o novo, nem se fala.
Beijos,
Júlio
Elisangela,
obrigado.
Abraços,
Júlio
Sensacional! Deixo o convite para que conheça o Clube do Crime, uma rede da Companhia das Letras voltada para fãs da literatura de suspense.
Facebook: https://www.facebook.com/clubedocrime
Site: http://www.clubedocrime.com.br/
Obrigado, Analaux.
Abraços,
Júlio
Legal entrar aqui e ler um novo post. Esse livro será o primeiro a ler quando entrar em férias. E quando elas estiverem para acabar, vou ler Ensino de História: diálogos com a literatura e a fotografia. Desejo que essa obra seja meu norte no meu planejamento de 2015. Abraços.
José Alberto,
obrigado.
Tomara que goste das duas leituras.
E, se quiser conversar algo sobre as relações história/ficção, mande sinais.
Abraços,
Júlio