Os livros e os dias, de Alberto Manguel

 

Os livros e os dias é o título, no Brasil, de um livro que, no original, se chama Um diário de leituras.

 

E assim se chama porque isso o é: Alberto Manguel resolveu reler um de seus livros favoritos por mês, ao longo de um ano (entre 2002 e 2003), e anotar suas impressões de leitura. Trata-se, portanto, efetivamente de um diário — o que a alusão a Hesíodo, contida no título da edição local, pode apagar.

 

Há de tudo em suas escolhas: Bioy Casares, Wells, Kipling, Chateaubriand, Conan Doyle, Goethe, Grahame, Cervantes, Buzzati, Shonagon, Atwood, Machado de Assis. Num rápido balanço: duas mulheres, dez homens; um livro das literaturas alemã, brasileira, canadense, francesa, italiana e japonesa, dois da espanhola e quatro da inglesa.

 

A leitura de Manguel não se desconecta da vida vivida. Ele, aliás, alerta, já na apresentação, que “leitura é conversa” e, portanto, tramas e textos dos doze livros devem deixar brechas para a irrupção do quotidiano e de questões aparentemente extraliterárias. É assim que podem surgir considerações mais ou menos profundas sobre a recente ditadura argentina, o terrorismo internacional ou a “estupidez humana”.

 

Lembremos: é um diário, e duas das marcas desse tipo de escrita são exatamente a irregularidade e um possível vazio. Nem todos os dias, afinal, acontece algo memorável ou somos capazes de pensar e redigir um texto que ultrapasse o instante e o interesse pessoal e estrito. O leitor de diários sabe disso, aprendeu a tolerar banalidades e idiossincrasias.

 

O fio —e o tema— dos livros ajuda a preencher as lacunas do cotidiano e o próprio Manguel reconhece os limites de seu texto, ao comentar, sobre Chateaubriand, que este fora o único escritor a fazer um diário não egocêntrico, logo, de interesse amplo.

 

A irregularidade do diário de Manguel se manifesta também nas anotações sobre livros. A parte sobre Machado, por exemplo, resume-se a generalidades e esquemas analíticos ultrapassados. O capítulo sobre Bioy finge desconsiderar a ampla fortuna crítica em torno de A invenção de Morel.

 

Mesmo no erro ou na superficialidade, o livro levanta temas decisivos: o lugar do leitor (ou, no caso, do re-leitor) e o movimento algo mágico da penetração recíproca entre livros e leituras —o quanto elas se imiscuem umas nas outras, a impossibilidade da “leitura virgem” (aquela que se supõe alheia a qualquer impressão prévia sobre o livro que inicia), a datação de toda leitura, seu tempo único e irreparável.

 

Ao apontar a complexidade de toda leitura e a necessidade de pensarmos sobre seus mecanismos internos, Manguel instiga o leitor, retorna ao tema principal de sua obra e pode abandonar julgamentos apressados sobre livros e autores.

 

Mais: nos permite lembrar que, afinal de contas, reler —como já sugeriu Calvino— nos ajuda a reavaliar, simultaneamente, o livro e nós mesmos.

 

 

Alberto Manguel. Os livros e os dias. Um ano de leituras prazerosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (original: 2004; tradução: José Geraldo Couto)