podcast: um novo mapa da América do Sul

 

No link abaixo, comentário em podcast na Rádio Metrópole de Salvador sobre um surpreendente e inovador mapa da América do Sul.

 

O comentário foi ao ar na segunda-feira, dia 23 de março.

 

http://www.radiometropole.com.br/objetos/audios/23-03-09_comentario_julio_pimentel.mp3

 

Luisito, de Susanna Tamaro

 

Luisito nem é um grande livro, mas confirma a incrível capacidade da literatura italiana de produzir personagens femininas inesquecíveis.

 

O livro de Susanna Tamaro é breve e sua estrutura, praticamente de conto. No entanto, Anselma, a protagonista, envolve pouco a pouco o leitor, transfere suas aflições, emociona e desconforta.

 

Certamente foi a obra fabulosa de Natalia Ginzburg, maior ficcionista italiana do XX, que criou essa legião de mulheres que impressionam. Mulheres que Natalia esculpia com detalhes agônicos e que viviam em espaços restritos – na geografia e nas emoções. Mulheres que se esqueciam de si até o dia em que se davam conta de que a vida correra, se aproximava do fim e ainda lhes faltava agir.  

 

Tamaro não é Natalia – ninguém é – mas apresenta uma Anselma meio esquecida pelos filhos, viúva de um homem que por poucos anos a iludiu e, durante muitos, a decepcionou. Anselma, que prefere mesmo ter os filhos (com respectivos cônjuges, e os netos) à distância, uma vez que não há conversa, não há conexão possível com eles – “clones”, pensa, do pai.

 

Anselma, que perdeu a melhor amiga, a inesquecível companheira da infância e da juventude, vítima de câncer. E que se ressente de ter se afastado dela após o casamento. Anselma.

 

Eis que um dia, ela encontra um papagaio abandonado no lixo. Leva para casa, o batiza como Luisito, e sua vida muda. Afeto, percebe, pode vir com penas, bico pontudo, algumas palavras repetidas e um contínuo krak, krak. Daí o subtítulo do livro: uma história de amor.

 

Apenas uma semana de convívio com Luisito a transforma. Faz Anselma rever o passado, contar para si mesma as armadilhas em que caiu, pensar quão intensa foi sua relação com a antiga amiga, buscar pessoas queridas há tanto tempo afastadas.

 

O mundo pérfido, porém, a espreita e o desfecho do amor e da vivacidade que ela reinventa através de Luisito pode não ser bom. Não importa. Protagonista típica de uma das melhores literaturas do XX – infelizmente pouco conhecida nesse Brasil francófilo –, Anselma concentra uma vida inteira, mas de setenta anos, no imenso moinho das recordações. Ama Luisito também porque isso significa voltar a amar, poder amar.

 

E o leitor fica a se olhar, e a olhar os outros, no espelho da vida de Anselma, no seu mundo tão pequeno, ampliado por uma ave. Ampliado por ela mesma.

 

Susanna Tamaro. Luisito. Rio de Janeiro: Rocco, 2009

 

O filho da mãe, de Bernardo Carvalho

 

O filho da mãe se passa na Rússia do final do XIX ou do XX? Ou num conhecido consultório vienense da virada do século? Ou no Brasil de hoje?

 

Porque o novo livro de Bernardo Carvalho conta histórias de guerras. Registros da barbárie – que é contemporânea e, cada vez mais, parece atemporal.

 

Porque fala de perdas e recorre a uma dicção que explícita e intencionalmente retoma o padrão narrativo dos grandes romances oitocentistas russos, Dostoiévski à frente.

 

Mas O filho da mãe também investe vigorosamente na discussão freudiana. Mães e filhos trocam suas angústias e contam suas perdas. Acumulam impasses e vivem a marginalidade de relações que, carentes de paternidade, se traduzem numa espécie de homoerotismo ininterrupto, quase inevitável.

 

Daí o leitor ser forçado a reconhecer que o debate psicanalítico é tão importante, por trás do livro, quanto o literário. E que o desejo de afirmação de novos enunciadores de discursos e de práticas cotidianas ultrapassa, em muito, o panorama russo e atinja os ares brasileiros, ou ocidentais.

 

Na verdade, Bernardo Carvalho combina todos esses elementos e os funde numa narrativa vigorosa. Escreve algumas páginas extraordinárias, que se equiparam aos melhores momentos de seus melhores livros (Nove noites, Mongólia). A confissão de Anna, entre as páginas 88 e 89, por exemplo, é concisa, seca, intensa, forte, amarga, triste, decisiva. O leitor procura adjetivos para caracterizá-la enquanto se envolve e ri – pelo prazer da leitura.

 

Carvalho também varia continuamente a perspectiva do narrador, junto com o tipo de discurso empregado, adequando o registro a cada trama. Constrói os personagens com densidade e coloca em paralelo mães simultaneamente fracas e fortes e filhos que vivem à deriva. Todos vulneráveis – explica o narrador e mostra um mundo em que amor e sexo, guerra e humilhação se associam para intensificar a tragédia de todos: russos de qualquer século, brasileiros. Sempre há alguém prestes a nos atacar.

 

A oscilação entre tempos e lugares, porém, enfrenta uma barreira no livro. O olhar sobre São Petersburgo, cidade-chave da trama, é artificial. Aparentemente, uma artificialidade intencional e calculada, expressa no espanto de um narrador que já devia conhecer aquelas paragens, nas descrições detalhadas de lugares e na proliferação de nomes. Mas esse tom falseado limita a entonação dramática que Carvalho aplica ao desenvolvimento das histórias e sugere – à semelhança de seu último livro, O sol se põe em São Paulo – que o gosto da brincadeira literária quer se impor ao trabalho narrativo. Que o diálogo intertextual é mais importante do que a história em si.

 

O artificialismo na relação com a cidade atrapalha, por exemplo, o desfecho, que pode decepcionar o leitor mais interessado na história do que na discussão teórica ou no diálogo entre autores. Mas não chega, claro,

a corroer o livro. Bernardo Carvalho, um de nossos principais escritores na atualidade, demonstra a força de seu texto e seu rigoroso domínio técnico. Faz de O filho da mãe, ainda em março, um dos prováveis melhores livros do ano. E uma leitura indispensável.

 

 

Bernardo Carvalho. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

 

Paisagens da Crítica publicou comentário, no endereço antigo do blog, sobre outro livro de Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo (3 de abril de 2007): http://paisagensdacritica.zip.net/arch2007-04-01_2007-04-07.html

 

Argentina & Brasil

 

O Consulado Geral da República Argentina em São Paulo e a Casa das Rosas convidam a comunidade de São Paulo a assistir a uma mesa redonda sobre o tema

 

A narrativa argentina e seus encontros com a narrativa brasileira

 

com a participação de convidados do meio literário dos dois países

 

convidados argentinos

Daniel Link

Horácio González

Damián Tabarovsky

 

convidados brasileiros

Ana Cecilia Olmos

Júlio Pimentel Pinto

 

 

Local: Casa das Rosas – Av. Paulista, 37 – Bela Vista – São Paulo/SP

Data: Quarta-feira, 18 de março de 2009            

Horário: das 19 às 21 horas

 

A cidade ilhada, de Milton Hatoum

 

A cidade ilhada traz, pela boca de um de seus personagens, sua autodefinição: “ninguém pode ser totalmente outro”.

 

Afinal, a cada página do novo livro de Milton Hatoum, pensamos nos anteriores. E também nos sentimos distantes deles.

 

Livro no espelho de outros livros, A cidade ilhada repõe temas e circunstâncias já conhecidas, mas mesmo assim, surpreende.

 

O leitor encontra lá o riso melancólico a que se habituou e o traçado de Manaus – mais tortuoso pela força da memória do que pela topografia.

 

Encontra também definições e frases contundentes, categóricas, que revelam a sensibilidade – digamos – filosófica do texto. Aquelas frases que são idéias incomuns e que só se comunicam pela precisão da sentença escrita e reescrita, pensada e elaborada, da palavra justa.

 

Encontra, ainda, certos personagens ou parentes próximos deles. O tio Ran aparece em mais de uma história e, em outras, temos ecos dos pais, das mães e dos vizinhos dos três romances e da novela que antecederam A cidade ilhada.

 

A cidade ilhada é o primeiro livro de contos de Hatoum e a forma breve, o enlace de tramas em planos diferentes, com movimentos que fazem uma ou outra se sobrepor a cada parágrafo, é apenas a primeira surpresa do leitor.

 

A segunda é notar que, afinal de contas, os contos não são exatamente contos. Suas fronteiras são porosas e facilmente percebemos, em alguns dos textos, o tom de crônica ou a força da crítica literária.

 

E embora os ecos de Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Borges não sejam propriamente surpreendentes, eles agora parecem mais explícitos. Borges especialmente parece acompanhar cada linha do conto-título ou de “A natureza ri da cultura”. Machado, por exemplo, ilumina a pista de “Dançarinos na última noite”. E Cortázar, que ainda não havia aparecido, ressoa por trás da melhor narrativa: “Bárbara no inverno”.

 

As referências são claras sem ser exageradas, sem ultrapassar seu espaço possível, nem se impor à trama que alimentam. O diálogo subterrâneo ajuda a construir as variações de perspectiva e entonação ou as oscilações de registro narrativo, que podem buscar a linguagem do cinema ou do teatro para enfatizar uma cena ou destacar um personagem. Para mostrar sua leitura cáustica de certos estereótipos brasileiros – que um crítico desavisado ou sobreavisado pode confundir com a fala do próprio autor.

 

Diálogo subterrâneo que é, sobretudo, diálogo – independentemente do adjetivo. E é essencial num livro que fala da errância, circula entre geografias e temporalidades, vai de Bombaim a Barcelona e a Palo Alto, cruza Manaus tantas vezes e transborda fronteiras, sem nunca escapar do peso da memória da infância. Tensão, contradição? Não: nada é mais errante do que nossa memória, mesmo se a supusermos paralisada.

 

Hatoum sabe disso e lida com os labirintos da memória a cada conto de A cidade ilhada. Porque sua cidade literária se comunica o tempo todo com outras e, principalmente, com o leitor. Nunca é totalmente outra, mas sempre sonda a chance de migrar.

 

Milton Hatoum. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

 

 

Paisagens da Crítica já publicou comentário sobre outro livro de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado (17 de março de 2008)