A cidade ilhada traz, pela boca de um de seus personagens, sua autodefinição: “ninguém pode ser totalmente outro”.
Afinal, a cada página do novo livro de Milton Hatoum, pensamos nos anteriores. E também nos sentimos distantes deles.
Livro no espelho de outros livros, A cidade ilhada repõe temas e circunstâncias já conhecidas, mas mesmo assim, surpreende.
O leitor encontra lá o riso melancólico a que se habituou e o traçado de Manaus – mais tortuoso pela força da memória do que pela topografia.
Encontra também definições e frases contundentes, categóricas, que revelam a sensibilidade – digamos – filosófica do texto. Aquelas frases que são idéias incomuns e que só se comunicam pela precisão da sentença escrita e reescrita, pensada e elaborada, da palavra justa.
Encontra, ainda, certos personagens ou parentes próximos deles. O tio Ran aparece em mais de uma história e, em outras, temos ecos dos pais, das mães e dos vizinhos dos três romances e da novela que antecederam A cidade ilhada.
A cidade ilhada é o primeiro livro de contos de Hatoum e a forma breve, o enlace de tramas em planos diferentes, com movimentos que fazem uma ou outra se sobrepor a cada parágrafo, é apenas a primeira surpresa do leitor.
A segunda é notar que, afinal de contas, os contos não são exatamente contos. Suas fronteiras são porosas e facilmente percebemos, em alguns dos textos, o tom de crônica ou a força da crítica literária.
E embora os ecos de Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Borges não sejam propriamente surpreendentes, eles agora parecem mais explícitos. Borges especialmente parece acompanhar cada linha do conto-título ou de “A natureza ri da cultura”. Machado, por exemplo, ilumina a pista de “Dançarinos na última noite”. E Cortázar, que ainda não havia aparecido, ressoa por trás da melhor narrativa: “Bárbara no inverno”.
As referências são claras sem ser exageradas, sem ultrapassar seu espaço possível, nem se impor à trama que alimentam. O diálogo subterrâneo ajuda a construir as variações de perspectiva e entonação ou as oscilações de registro narrativo, que podem buscar a linguagem do cinema ou do teatro para enfatizar uma cena ou destacar um personagem. Para mostrar sua leitura cáustica de certos estereótipos brasileiros – que um crítico desavisado ou sobreavisado pode confundir com a fala do próprio autor.
Diálogo subterrâneo que é, sobretudo, diálogo – independentemente do adjetivo. E é essencial num livro que fala da errância, circula entre geografias e temporalidades, vai de Bombaim a Barcelona e a Palo Alto, cruza Manaus tantas vezes e transborda fronteiras, sem nunca escapar do peso da memória da infância. Tensão, contradição? Não: nada é mais errante do que nossa memória, mesmo se a supusermos paralisada.
Hatoum sabe disso e lida com os labirintos da memória a cada conto de A cidade ilhada. Porque sua cidade literária se comunica o tempo todo com outras e, principalmente, com o leitor. Nunca é totalmente outra, mas sempre sonda a chance de migrar.
Milton Hatoum. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
Paisagens da Crítica já publicou comentário sobre outro livro de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado (17 de março de 2008)