Um erro emocional, de Cristovão Tezza

 

Um erro emocional vira de ponta-cabeça a célebre ideia do instante capaz de cifrar uma vida inteira. Borges, por exemplo, a adorava e, a partir dela, escreveu contos e mais contos em que um episódio pontual, muitas vezes um acidente, resumia longas trajetórias, explicava vida e vontade de alguém.

O diálogo entre Donetti e Beatriz, personagens do novo livro de Cristovão Tezza, oferece o oposto disso: a vida inteira de ambos conflui para uma só noite e conspira para cifrar seu encontro algo fortuito.

Donetti é escritor, quarenta e poucos anos, já pareceu promissor e virou apenas uma promessa não cumprida. Vem de fracassos literários e pessoais, vive à deriva, ganhando trocados aqui e ali com palestras e pequenas publicações, lamenta as críticas negativas a seus livros, sente que a mediocridade o ronda.

Beatriz é bem mais moça e carrega pecados alheios e próprios, culpas merecidas e imerecidas, que incluem a morte acidental dos pais e a traição recíproca dela e do ex-marido.

Donetti a corteja, a deseja. Beatriz, fascinada pelo escritor que admira, hesita e ambiguamente joga com a possível aproximação entre eles. Ambos são marcados por verdades e crenças pessoais, desconsolos e inquietudes. O passado os espreita e o futuro parece oco.

Numa noite de Curitiba — cidade que ele visita e onde ela mora — encontram-se para conversar sobre um trabalho conjunto. A ideia foi dele, que lhe telefonou cedinho, ansioso, após terem se conhecido no jantar da véspera. Sabemos disso e de todo o resto pelas lembranças que acompanham sua conversação. Porque o livro apresenta apenas uma noite, tempo uno que envolve uma pizza, duas ou três garrafas de vinho, um chá, um café e um carrossel de lembranças.

Este, o momento que parece abrir-lhes o futuro, mas que não se solta do passado. A conversa é errática, repleta de longos silêncios — quando a memória prevalece e faz com que os não-ditos superem os ditos. Memórias como rascunhos das falas; tateio que impede explicitações, que oscila conforme o mergulho profundo ou raso no passado, prazeroso ou inquieto. Lembranças que suspendem falas, que quebram o ritmo do diálogo e que, muitas vezes, os colocam em momentos opostos de abertura e aceitação do outro. Espécie de prosa da memória que, por sua vez, funda o instante presente.

Não por acaso, o sentido aparente da conversa gira em torno de um livro a ser escrito por Donetti, revisado e considerado por Beatriz. O papel amarelo do manuscrito fica sobre a mesma mesa da pizza e do vinho e, quando a conversa parece escapar do controle, é refúgio conveniente. Um e outro, porém, sabem que o texto principal de sua fala é o personagem que ora representam. Um e outro sabem que aquele que está defronte é tela onde se projeta o passado fragmentário, com sua carga infinita de desassossego.

A unidade do tempo e da ação é confirmada por variações cênicas sutis, da sala à cozinha, que não nublam o fato de que a verdadeira história de Donetti e Beatriz transcorre interna, subterraneamente. O narrador circula entre eles, acompanha a consciência de ambos, busca as horas de expectativa e de torpor, a iminência do risco, o temor e a insistente construção de si mesmo.

Uma noite inteira lado a lado revela menos, afinal, do que esconde — tal qual o título do livro, que sugere explicitamente o reconhecimento do abismo pessoal e, ao mesmo tempo, o mascara numa expressão vaga. Donetti a usou ao chegar à casa de Beatriz e ela ecoou silenciosa por trás dos dois, insinuando a perspectiva de que outros erros emocionais, seja lá o que isso for, acontecessem.

Um erro emocional é o primeiro livro de Tezza depois do tremendo sucesso de O filho eterno. É evidentemente superior ao livro que lhe deu tantos prêmios e, segundo entrevistas dadas pelo autor na época do lançamento, antecipa uma nova proposta de escritura. Ela pode ganhar mais corpo e solidez em livros futuros, mas isso não impede que este já seja um grande acerto de um dos raros bons escritores no painel franzino da literatura brasileira de hoje.

Cristovão Tezza. Um erro emocional. Rio de Janeiro: Record, 2010