Um solitário à espreita, de Milton Hatoum

 

Um solitário à espreita é o título do livro de crônicas de Milton Hatoum. Mas é também o narrador, os narradores, das histórias, às vezes o autor. É você, leitor, sou eu.

 

Então não há apenas um solitário à espreita, mas muitos, múltiplos. E eles seguem pelos caminhos algo enviesados do dia-a-dia, pelas margens do senso comum, bem longe da alienação ensimesmada dos nossos dias.

 

Eles seguem, nós seguimos: o narrador é sempre ele mesmo, coerente nas opiniões e insistente no olhar curioso, e é também um outro — ou os vários outros com quem dialoga histórias adentro e mundo afora. Porque o livro, de fato, é um carrossel de histórias, casos colhidos aqui e ali, na calçada de uma rua, na conversa com conhecidos ou não, numa infância longínqua, na imaginação.

 

Crônicas, afinal — esse gênero que teve Rubem Braga e Drummond e hoje vive quase abandonado, trocado por relatos egocêntricos e ocos. Hatoum tenta recuperar o tempo perdido da crônica com a consciência histórica e literária de que esta é uma batalha perdida: a solidão atual é de outra espessura, mais fina e leve, em tudo superficial, bem distante da que puderam cultivar Braga ou Drummond. Por isso, sua espreita solitária carece, na maior parte das vezes, do tom risonho que nossos bons velhos cronistas se permitiam; as histórias recuperam o desconforto, expõem a melancolia, frequentam a indignação.

 

Um grande escritor toscano, Antonio Tabucchi, disse certa vez que a literatura do século XX foi feita de desassossego — independentemente do gênero, da estratégia narrativa ou do tema, havia esse subtema constante, esse pano de fundo, essa perspectiva. Passamos ao XXI e, com todas as mudanças havidas, a constatação de Tabucchi persiste viva. Solitários entre a gente, seguimos desconcertados, presas de uma agitação furtiva, às vezes consciente, de um desagrado que substitui o riso pelo esgar.

 

Assim são os narradores dessas crônicas: espantam-se diante do que parece grande, mas é ridículo ou patético — as negociatas políticas, o descalabro dos governantes — e encantam-se com o que parece pequeno, mas é profundo — os breves relatos pessoais, as histórias feitas de prosaísmo e paixão. Nostálgicos, eles tentam arrebatar outras coisas perdidas na voracidade selvagem do tempo e da memória: um passado que possa ser captado num relance, relações e anseios anestesiados há décadas, um ou outro sonho que primeiro arrebatou, depois devastou.

 

Há, porém, uma diferença frente a você, leitor, ou a mim: o olhar arguto e interessado pelas gentes, incomum e estranho à maioria das pessoas. Tamanha estranheza força o narrador à marginalidade. Não é outra, aliás, a metáfora da espreita: não há lugar, no centro dos dias que vivemos, para aquele que não acredita em fantasmagorias políticas ou pirotecnias estéticas, para quem não segue o doce embalo das frases feitas e das notícias prontas. O narrador percebe — para além do desassossego — sua inadequação e dispõe-se a relatá-la: escrevendo, interpreta; interpretando, compreende — dentro do possível.

 

E nós, que lemos o que escreve, nas suas dores lidas sentimos bem, não as duas que ele teve — dor vivida e dor narrada —, mas só a que também temos e, na vertigem do presente, dela nem nos demos conta.

 

Milton Hatoum. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

10 pensamentos sobre “Um solitário à espreita, de Milton Hatoum

  1. eu assisti matérias do hatoum falando desse livro, eu que adoro esse autor já tinha colocado essa obra na lista. estou lendo um muito bacana que relata paris após guerra, as reuniões dos escritores e relatos de vários escritores negros. chama à margem esquerda do james campbell q nasceu em glasgow e procuro mais informações. adorei que voltou a escrever. beijos, pedrita

  2. Professor, (tenho maravilhosas lembranças dos tempos de História da Cultura IV – Literatura Policial). Fico feliz de ter voltado a escrever no blog depois de um bom tempo.

    • Puxa, Lú, obrigado.
      Os dias andam meio difíceis, mas não podia deixar de falar desse livro.
      Semestre que vem, voltarei a dar aquela disciplina, que também adoro.
      Abraços,
      Júlio

    • Pedrita,
      tudo bem?
      Obrigado!
      Beijos,
      Júlio

      Glauder,
      tudo bem?
      Obrigado por seu comentário.
      Tabucchi é dos grandes autores do pós-guerra. É sempre bom lê-lo e relê-lo.
      Abraços,
      Júlio

  3. Prof. Júlio, sob sua indicação, li “É sempre tarde demais”, de Antônio Tabucchi, e agora já procuro os outros livros dele, espreitando essa sensação de solidão e desassossego de que fala. Estávamos, todos os seus leitores, com saudades. Abraço, Guilherme

  4. Pingback: Um solitário à espreita, de Milton Hatoum – por Júlio Pimentel Pinto, 15/08/2013 « Milton Hatoum

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