podcast: bandeirantismo

 

No link abaixo, comentário em podcast na Rádio Metrópole de Salvador sobre as interpretações do bandeirantismo.

 

O comentário foi ao ar na quarta, dia 29 de outubro.

 

 

http://www.radiometropole.com.br/objetos/audios/27-10-08_comentario_julio_pimentel_BANDEIRANTES.mp3

 

O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara

 

O Livro Amarelo do Terminal inverte o célebre ditado. Há males que vêm para bem – sabemos. E há bens que vêm para mal – aprendemos.

 

O bem que veio para mal, no caso, é o projeto gráfico do livro. Ele é quase todo impresso sobre papel amarelo, de baixíssima gramatura, com tipos pequenos dispostos em espaço duplo. A parte histórica sugere carbono roxo sobre papel branco. Intervenções no mesmo padrão-carbono, ou mimeógrafo, preenchem e diversificam o visual, junto com outros elementos gráficos salpicados aqui e ali.

 

O projeto sem dúvida é criativo e tenta ampliar os significados do texto. Peca, porém, pelo excesso. No lugar de auxiliar, polui. A boa intenção acaba por atrapalhar a leitura.

 

E é uma pena, porque o livro de Vanessa Barbara é muito bom. Não precisava do apoio que o design tenta dar e que acaba por nublar o texto fluido e divertido que mostra a pesquisa da autora sobre o caos instaurado na Rodoviária do Tietê. Porque O Livro Amarelo se dispõe a mapear o maior terminal de ônibus de São Paulo e, para tanto, segue os caminhos de suas gentes e coisas.

 

Vanessa Barbara é boa jornalista. Escreve na Piauí e, mais recentemente, no Estado. Também escreveu um bom romance em parceria com Emilio Fraia. Sobretudo sabe combinar leveza e densidade. Na origem, fez O Livro Amarelo como monografia acadêmica. Sem nada do enfado que a academia oferece. Vanessa é sutil. Seu texto mistura registros variados: passa do relato de observação à análise psicológica, da sátira ao lirismo que alguns personagens inspiram, da crítica política ao desvendamento da intimidade.

 

A organização do livro é também engenhosa: associa temas e espaços, percorre itinerários (nos vários sentidos), perscruta o lugar e, de algum jeito cifrado, pergunta: o Terminal tem alma? Para responder, nostalgicamente, que sua única alma é mutante na aparência.

 

Não, não precisava sobrecarregar o visual do livro. Bastava expor a escrita aguda do tempo presente. Porque O Livro Amarelo trouxe de volta a crônica, atualizando-a numa época em que a supúnhamos quase morta e sepultada – com raras e honrosas exceções.

 

Ao subir e descer nos níveis da Rodoviária, Vanessa B. também associa tempos: o passado-tão-presente da construção e das transformações da Rodoviária ao presente-tão-antigo do movimento atual. De ambos ao futuro incerto e, não paradoxalmente, previsível, em que seus personagens estão fadados à repetição das mesmas cenas, presos no mesmo labirinto de corredores que tentou fixá-la e foi rompido pela boa escrita e, diria Cabral, por sua agulha do instante.

 

 

Vanessa Barbara. O Livro Amarelo do Terminal. São Paulo: Cosac Naify, 2008

 

Paisagens da Crítica já comentou o romance de Vanessa Barbara (em parceria com Emilio Fraia), O verão do Chibo (28 de julho de 2008).

 

das cifras

 

Queridos Leitores

 

A paixão pelas cifras redondas é inevitável.

 

Pois bem: nesta semana, Paisagens da Crítica, o novo, no WordPress, ultrapassou 15 mil acessos.

 

E Paisagens da Crítica, o velho, no Uol, virou a casa dos 50 mil.

 

Obrigado, obrigado.

 

Abraços,

Júlio

 

nota: Jorge Luis Borges

 

Jorge Luis Borges é hoje um personagem conhecido. Cego, de terno, bengala na mão, meio alheio ao redor, cabeça ligeiramente voltada para o alto: a imagem nos vem rapidamente à cabeça e evoca muitas associações. Pensamos na figura do cego-memorioso que, na tradição grega, representava aquele que nos contava do passado. Pensamos no bibliotecário-cego, também Jorge, personagem de O nome da Rosa, primeiro romance de Umberto Eco. Pensamos em alguma rua de Buenos Aires. De alguma forma, Borges está presente em nossa imaginação. E por meio de um personagem que destaca a sisudez e que combina com algumas informações de sua obra que temos mesmo antes de começar a lê-la: o escritor latino-americano do século XX mais celebrado pela crítica, citado constantemente por filósofos, influência decisiva sobre a ficção argentina e ocidental, professor e bibliotecário. Um homem clássico.

 

A leitura da obra (principalmente a mais divulgada, suas narrativas curtas das décadas de 1940) certamente confirmará todas essas informações, ou quase todas. No entanto, a presença de Borges na cena literária é bem anterior à construção dessa imagem, à circulação desse personagem e aos contos famosos de Ficções (1944) ou de O aleph (1949). Seus textos são bem mais diversificados do que normalmente se supõe. Borges foi poeta, contista, ensaísta. Escreveu histórias fantásticas e policiais, poemas rigidamente metrificados e versos livres, ensaios verdadeiros e falsos, textos de crítica literária e roteiros para cinema. Organizou antologias literárias e, em parceria com o também argentino Adolfo Bioy Casares, produziu de propaganda de iogurte a divertidíssimos enredos de investigação. Talvez a face menos lembrada de Borges seja a de vanguardista – e, no entanto, foi exatamente no contexto das vanguardas que a obra de Borges se iniciou.

 

Seu primeiro livro foi publicado em 1919 e recebeu o título de Salmos vermelhos (ou Ritmos vermelhos). Borges, que nascera vinte anos antes, morava na Europa desde 1916. Seguia, da Suíça ou na Espanha, os rumos da mobilização vanguardista. E esses Salmos – cuja cor remete à Rússia recentemente bolchevista – ecoam os ruídos da Primeira Guerra Mundial e celebram, em versos livres, o mundo de máquinas e velocidades que tanto agradava aos futuristas. Lê-lo hoje é um choque, principalmente para quem conhece a cadência e a regularidade do espanhol borgeano e de seu repertório temático e metafórico. O próprio Borges se espantou com os versos que cometera em 1919 e, em vida, nunca mais autorizou a reedição do livro. Mas sua ação de vanguarda apenas começava.

 

Em Madri, teve contato com Rafael Cansinos-Asséns, nome central do recém-criado ultraísmo espanhol, e publicou, na revista Ultra, o sintético “Anatomia do meu ultra”, em que defendia a possibilidade de conciliação entre a “estética ativa dos prismas” (que associava ao cubismo e ao expressionismo) e a “estética passiva dos espelhos” (futurismo). Definia, ainda, as “intenções” de seu esforço lírico: a busca da “sensação em si” por meio do ritmo e da metáfora. O tom de manifesto deixava clara sua inserção vanguardista e anunciava disposição ativa para a mudança e para a representação deformada da realidade: estava mais perto do expressionismo “prismático” do que do futurismo “espelhador”, mas, de qualquer maneira, no universo das vanguardas. Quando retornou à Argentina, em 1921, ingressou rapidamente no esforço renovador portenho. Entre 1920 e 1929, publicou 232 textos em periódicos, alguns fundados e dirigidos por ele. Principalmente liderou a produção da folha mural Prisma que, com suas duas edições (1921 e 1922), inaugurou a vanguarda argentina. Também esteve bastante presente na segunda fase da revista Proa (1924-26) e na Martín Fierro (1924-1927).

 

Para alguns críticos, o engajamento vanguardista correspondeu a uma “primeira fase” de sua obra, depois superada pelo Borges que, segundo ele mesmo, “caminhou gradualmente para o classicismo”. Nesse “primeiro Borges”, havia também o tom nacionalista que caracterizava o esforço das vanguardas de identificação da especificidade local. Foi isso que marcou, além dos artigos e manifestos, os ensaios que escreveu e reuniu em três livros: Inquisiciones (1925), El tamaño de mi esperanza (1926), e El idioma de los argentinos (1928). Sua leitura, hoje, é igualmente surpreendente: mostra uma orgulhosa recusa borgeana da norma culta do espanhol e o emprego repetido de argentinismos, expressões gauchescas e criollas, de extração oral. Assim, afirmava, podia “ouvir a Pátria”. Claro que esses volumes foram depois renegados por Borges, que tratou de suprimi-los para afastar a “vergonha” de tê-los escrito. Dizia que perdera o dicionário de argentinismos e, agora, sequer os entendia.

 

Não só os Salmos vermelhos e os ensaios nacionalistas dos anos 20 desapareceram das estantes. Muitos dos poemas publicados na década das vanguardas foram eliminados ou drasticamente alterados em edições posteriores. O que encontramos nas edições atuais dos livros de poesia datados desse período – Fervor de Buenos Aires (1923), Lua defronte (1925) e Caderno San Martín (1929) – não equivale ao que as primeiras edições continham. A mão sempre reescritora de Borges atuava para redefinir o futuro e, sobretudo, o passado de seus escritos. No entanto, uma observação atenta de sua produção vanguardista revela que talvez a mudança não tenha sido tão profunda. Que há mais continuidade do que ruptura entre o “primeiro Borges” e o “Borges maduro” que veio depois e repudiou as vanguardas. Borges, aliás, não foi apenas um dos fundadores da vanguarda argentina; foi também (num papel equivalente ao desempenhado por César Vallejo no Peru) um de seus primeiros críticos.

 

Antes disso, os textos dos anos 20 indicavam questões de sua obra posterior. Em “Proclama” (que saiu na Prisma de 1921), por exemplo, contrapôs-se à rigidez da tradição e “à crença arraigada em uma personalidade estática do autor”. Em dois artigos publicados em dezembro de 21 e agosto de 22, refutou a noção do clássico como conjunto fixo e uniforme de textos e caracterizou-o como um patrimônio móvel de leituras, que podia ser diversamente apropriado e que determinava a escritura. Mais importante do que a suposta personalidade do autor, era seu repertório de leituras; o escritor era, prioritariamente, um leitor que fazia suas escolhas a partir do que lia. Tradição móvel e centralidade da leitura: duas das mais destacadas características da obra borgeana, duas de suas bases conceituais, dois fundamentos de seus procedimentos literários.

 

Afinal, o que está por trás, por exemplo, da famosíssima obra de Pierre Menard senão a percepção de que a leitura refunda toda tradição e lhe dá novos significados? Pierre Menard (conta-nos Borges num dos textos mais conhecidos de Ficções) foi um escritor francês que resolveu, em pleno século XX, reescrever o Quixote. Não pretendia se basear no livro de Cervantes para escrever outro livro, nem encontrar algum cavaleiro andante à solta pela Europa do pós-guerra. Tampouco pensava plagiar o Quixote. Queria reescrevê-lo “palavra por palavra e linha por linha”. Sua empreitada – considera Borges – era dificílima: como a um homem do XX poderiam ocorrer as metáforas que, três séculos antes, Cervantes empregara? Como Menard, numa situação histórica e num panorama literário tão diverso da decadente Espanha de Filipe III, poderia imaginar a busca da justiça nos mesmos termos de Cervantes? Os obstáculos, porém, não desestimularam Menard. Ele não completou sua obra, mas escreveu páginas importantes. Elas eram idênticas às de Cervantes, mas superiores, porque obra de alguém que conseguiu se deslocar no tempo a ponto de perceber as relações e representá-las como um eco alterado do XVII.

 

Claro que Menard nunca existiu e que o ensaio em que Borges analisou sua obra é falso. Mas, em “Pierre Menard, autor do Quixote” (cuja primeira versão é de 1939), Borges debatia exatamente a infixidez das tradições. O Quixote melhor não era o de 1605; era o de sua leitura e apropriação possível trezentos anos depois. Num outro texto muito citado do “Borges maduro” e sempre tomado como exemplar de sua obra, a mesma noção reapareceu: “Kafka e seus precursores”, de Outras inquisições (1952). Após compor um breve inventário dos autores que anteciparam Kafka, Borges lançou uma questão aparentemente simples: se Kafka nunca tivesse existido, que fios ligariam esses “precursores de Kafka”? Nenhum, concluiu, e aí estava a prova de que a relação entre “precursores” e “sucessores” era mais complexa do que se costumava supô-la: não eram os precursores que definiam o sucessor, mas o sucessor que determinava uma linhagem de precursores ao combiná-los em seu texto. Ao reverter a cronologia literária, Borges, na prática, estabelecia uma relação em que o escritor se assumia como leitor e a leitura prevalecia à escrita.

 

A insistência borgeana na mobilidade da tradição e no papel fundador da leitura levou o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, um dos maiores intérpretes de Borges, a afirmar que sua obra, como um todo, era uma “poética da leitura”. A mesma idéia apareceu, de forma mais prosaica, mas igualmente instigante, no próprio Borges. Quando perguntado em 1984, dois antes de morrer, sobre o trabalho do escritor, resumiu: “o escritor é um amanuense dos outros, um amanuense, bem, de tantos mestres, que talvez o mais importante seria ser o amanuense e não o gerador da frase.” Escrever, para ele, era apropriar-se individualmente, pela leitura, de um patrimônio coletivo de textos, agir como uma “memória individual do coletivo” e, assim, reunir e organizar textos alheios numa nova combinação, reordenando a tradição para apresentá-la em nova roupagem e com outros sentidos. O que era sugerido no jovem Borges tornara-se decisivo no maduro. A experiência vanguardista, mais do que ultrapassada, havia assentado em Borges.

 

Não foi apenas o passado vanguardista que Borges assimilou e transformou. Releitor e reescritor contínuo de seus textos, nunca parou de mudá-los nas edições sucessivas. Mesmo os livros que o consagraram definitivamente – Ficções, O aleph ou Outras inquisições – e que lhe garantiram os principais prêmios literários (com exceção do Nobel) sofreram alterações. A primeira edição das Obras completas, em 1953, foi vista por ele como uma oportunidade de reescrever, incluir ou eliminar partes. Também não ficou ilesa de correções a obra em colaboração – ou ao menos parte dela, a realizada com Adolfo Bioy Casares. A republicação das histórias assinadas, nos anos 40, por Honorio Bustos Domecq e B. Suárez Lynch (pseudônimos que os reunia e inicialmente os encobria) ou as novas histórias escritas em parceria  nos anos 70 variaram em relação às primeiras versões.

 

A disposição borgeana de reescrever e de variar os vínculos com a tradição era também – notou a crítica Annick Louis – uma tentativa de controlar (ou orientar) a forma como sua obra era lida a cada tempo. Junto com a defesa da mobilidade da tradição e do primado das leituras, esse esforço de Borges confirma algo que, durante muitos anos, lhe foi negado: sua preocupação com a história e com a própria presença (mesmo se muitas vezes silenciosa) no espaço público. Da década de 1950 até a de 1980, prevaleceu, entre estudiosos de sua obra, a convicção de que o apego de Borges a um “espírito clássico” lhe conferia uma espécie de atemporalidade, uma indisposição para o presente. A figura do cego-memorioso reforçava a imagem e ele mesmo se empenhou, em declarações políticas estapafúrdias, em se mostrar alheio à realidade. No entanto, críticos recentes – Davi Arrigucci Junior, Silvia Molloy, Daniel Balderston, Beatriz Sarlo – perceberam que Borges não era estranho à história; apenas a tratava de forma peculiar. Agia perante a história, em alguma medida, da mesma forma como atuou nas vanguardas: com ímpeto, mas com a desconfiança inevitável de quem sabe que nada é estático e a convicção de que ninguém deve se vangloriar da atualidade do que escreve. Um escritor que ingenuamente se acreditasse original e inovador poderia fazê-lo; Borges, não. Ele se considerava prioritariamente um leitor – o que repetiu insistentemente em entrevistas. E exatamente por ser um escritor-leitor pôde ser original, inovador e ultrapassar em muito o personagem que parece falsamente alheio ao mundo que o cerca. Pôde propor, viver e abandonar as vanguardas. Construiu a obra que a crítica tanto celebra e que, mais de vinte anos depois de sua morte, seus leitores compreendem cada vez melhor.

 

[Esse texto foi originalmente publicado no número especial Cadernos Entrelivros – Panorama da Literatura Latino-Americana, número 7, junho de 2008]

 

Prêmio SP de Literatura

 

Ontem foram divulgados os finalistas da primeira edição do Prêmio São Paulo de Literatura.

 

Criado nesse ano, paga o maior valor de um prêmio literário no Brasil: 200 mil reais para o melhor livro de 2007 de autor estreante, e mais 200 mil para o melhor livro de autor não-estreante.

 

Para quem normalmente escreve por uns caraminguás, é dinheiro que não acaba mais.

 

O júri inicial selecionou, dentre os inscritos, dez títulos – cinco em cada categoria.

 

Agora, um outro júri escolherá os dois vencedores.

 

Os indicados (em ordem alfabética de autor) são:

 

não-estreantes:

Antonio, de Beatriz Bracher (34)

O sol se põe em São Paulo, Bernardo Carvalho (Companhia das Letras)

O filho eterno, Cristóvão Tezza (Record)

A muralha de Adriano, de Menalton Braff (Bertrand Brasil)

A copista de Kafka, de Wilson Bueno (Planeta)

 

estreantes

Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, de Cecília Gianetti (Agir);

Desamores, de Eduardo Baszczyn (7Letras);

A chave de casa, de Tatiana Salem Levy (Record);

Estado vegetativo, de Tiago Novaes (Callis);

Casa entre vértebras, de Wesley Peres (Record).

 

Claro que pode haver insatisfação aqui e ali, mas os dez títulos são bons e merecem a indicação.

Meus preferidos?

 

Cristóvão Tezza e Beatriz Bracher; Eduardo Baszczyn e Tatiana Salem Levy.

 

Agora resta esperar o resultado final.

 

Nobel 2008

 

E Le Clézio ganhou o Nobel de Literatura 2008.

 

Dizer o quê?

 

A escolha do prêmio deste ano já estava comprometida há semanas, desde que um dos representantes da academia sueca espinafrou a literatura norte-americana.

 

Disse que era pouco inventiva. Disse que não surpreendia. Disse que era auto-centrada e “não participava do grande diálogo da literatura mundial”.

 

Sei lá o que isso significa. Ainda mais num ano em que Philip Roth e Joyce Carol Oates estavam muito bem cotados.

 

Ninguém entendeu porque o clássico silêncio escandinavo foi rompido. E com bobagem da grossa.

 

Agora deu para entender. Inventividade, surpresa e capacidade de diálogo, para a academia sueca, é o que se faz na literatura francesa de hoje. Ah, bom.

 

Jean-Marie Gustave Le Clézio, justifica a academia sueca, é um escritor “nômade e cosmopolita”. Ele sabe andar pelo mundo e fala do mundo todo. Fala de lugares pobres e do meio-ambiente. Então é isso: a ficção tem que tratar dessas coisas para dialogar e ser inventiva.

 

Porque os impasses nas relações humanas de que fala Joyce Carol Oates só ocorrem nos Estados Unidos. A velhice – tema profundo dos últimos romances de Philip Roth – é também um tema exclusivamente norte-americano. Não vale para mais ninguém.

 

Mas, entre nós, não troco uma página de Roth pela obra inteira de Le Clézio.

 

A bem da verdade, não troco quase nada pela ficção previsível, diluída e esperta de Le Clézio.

 

Pois é, a academia sueca fez mais uma das suas. Não foi a primeira vez.

 

No passado, premiou escritores como Gabriela Mistral e Pablo Neruda,Toni Morrison e Dario Fo. Em outros anos, revelou autores que ninguém lia e, quando leu, não entendeu porque tinham sido premiados. Em 2007, para perplexidade de quase o mundo inteiro, desencavou Doris Lessing.

 

Ignorou – para ficar num só exemplo, suficientemente eloqüente – Borges.

 

Agora celebra Le Clézio e ignora Roth. Ok.

 

Dizer o quê?

nota: Felisberto Hernández

Felisberto Hernández (1902-1964) teve uma trajetória peculiar. Aprendeu piano logo cedo e passou a tocar em cafés e cinemas para ganhar a vida. Chegou a compor peças musicais e fez concertos no interior do Uruguai e na Argentina. Era músico, mas dedicava parte de seu dia a escrever.

 

O resultado da carreira paralela apareceu logo. Publicou seus dois primeiros livros na década de 1920: Fulano de Tal (1925) e Libro sin tapas (1929). Logo no início dos anos 30, mais dois: La cara de Ana (1930) e La envenenada (1931). É possível ouvir, nos quatro, ecos da aventura vanguardista: vem daí, por exemplo, a influência surrealista que Julio Cortázar, um de seus principais admiradores, destacou.

 

Mas é bom não limitar a imaginação de Hernández às perspectivas das vanguardas ou à matriz surrealista: seus livros posteriores ultrapassaram qualquer classificação e tornaram sua obra singular. No início dos anos 40, o que estava na margem passou para o centro: Hernández abandonou a carreira de pianista e se dedicou apenas à literatura. Escreveu, entre outros, El caballo perdido (1943), Nadie encendía las lámparas (1947), La Licorne (1955), El cocodrilo (1962) e Tierras de la memória (1964). Livros de contos que, para muitos, parecem novelas. Narrativas de cenas quotidianas que mostram loucura e tormentos mentais; histórias recheadas de humor ácido e de um cerebralismo que lembra Borges e conduz as tramas com forte tempero poético, alguma pitada de erotismo e um lirismo que, algumas vezes, toma conta do enredo e, outras, ganha tratamento irônico.

 

Dessa combinação singular resulta a obra de Hernández, uruguaio que antecipou Cortázar e Onetti e criou um universo ficcional próprio. Por isso, considerá-lo um autor de “narrativas fantásticas” – chavão banalizado e aplicado a quase toda literatura hispano-americana dos anos 50 em diante – é também restritivo. Porque uma das grandes viradas literárias de Hernández não vem do clima sombrio e das inversões lógicas que realiza; vem, principalmente, de sua capacidade de contaminar a ficção com elementos autobiográficos e privilegiar, de forma proustiana, os recursos da memória. Nesse jogo duplo, o autobiográfico é alterado, tensionado: rasga-se o pano da verdade para restar a interpretação que a imaginação ficcional constrói e permite. E o memorialismo de Felisberto Hernández – que não é só lembrança, mas esquecimento e variações – compõe o recurso principal de sua obra incomum e conquista o leitor pela mescla de riso e desconforto.

 

[Esse texto foi originalmente publicado no número especial Cadernos Entrelivros – Panorama da Literatura Latino-Americana, número 7, junho de 2008]