O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira

 

O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam é um ensaio sobre a loucura, mas não só.

 

O narrador é louco e lúcido, erudito e impreciso. Repassa a filosofia e remodela a sintaxe. Descobre e revela o mundo, mas um mundo estranho —estranho a seu interlocutor, que ouve o longo monólogo; estranho a quase todos os leitores. Um mundo estranho, talvez imaginário e, não paradoxalmente, bastante real.

 

Afinal, é o mundo das ruas, dos mendigos: personagens aestéticos aos olhos de tantos e estetizados pelo olhar e pela fala do narrador. Personagens em uma rotina teatral que flutua entre a observação arguta e as interpretações vagas ou as analogias arbitrárias: o menino é borboleta, a mulher é molusco. Um mundo que soa terrível e surge, no relato, revestido de fantasia.

 

Evandro Affonso Ferreira, o autor, gosta de narrativas breves —“novelinhas”, como ele mesmo as descreve— e categóricas. Textos concisos, como conciso foi o bilhete que o narrador recebeu, dez anos atrás, da amada: “Acabou-se; adeus”. Daí para frente, vagou pelas ruas de uma cidade expandida e não nomeada, em busca da amada, à espera dela.

 

Repete, qual um mantra: “Ela virá, eu sei”, e espera. Mendigo peculiar entre mendigos que só se igualam na perspectiva de quem os vê de fora da mendicância —ou da “farandolagem”, como prefere o narrador, insistindo e investindo na noção de movimento, de grupo, de (des)ânimo em concerto.

 

O narrador recita adágios de Erasmo de Rotterdam, mistura sua vida à vida do pensador, o elege como referência e explicação para tudo —sobretudo  para a esperança, concentrada no livrinho que carrega junto ao peito, que ele já decorou e cita insistentemente.

 

Tal qual em Erasmo, sua trajetória assume, a princípio, algo de humorístico —ele está evidentemente fora de lugar: pelo menos do lugar que, supõe-se, é reservado a alguém com sua formação. Ele é profundo e superficial, ácido e ingênuo, contrastante; e essas combinações fazem rir.

 

Riso, porém, rapidamente tornado esgar, riso torto. O desconcerto do narrador é belo e amargo, é diferente do dos outros mendigos, mas, no fundo, equivale ao deles: ao dos alcoólatras à beira da morte, ao da mulher, ao do menino; todos que vivem na rua têm, de resto, motivo só seu, alguma história horrível —às vezes, incrível; às vezes, banal— que os induziu à errância, ao desconsolo.

 

Do riso à sombra, então, é o caminho que o narrador trilha. O leitor o segue, deixando aos poucos de se divertir com os adágios e com a retórica. Juntos, narrador e leitor desembocam na frustração, na percepção de quão fundo é o abandono de cada personagem; quão irrefreável é a morte; quão inútil, a espera.

 

O mendigo…, portanto, fala da loucura e também da solidão. Da loucura e do amor. Da loucura e da errância, literal ou metafórica. Fala de certos movimentos inócuos, mas ainda assim repetidos, que fazemos, inconscientes, em busca da razão e da proximidade em relação ao outro. Fala da vontade, de todo ser, de persistir no ser —questão cara a Erasmo e, mais ainda, a Espinosa.

 

E, ao tratar de tantos e tão difíceis temas, numa dinâmica que soa dramática, mas é trágica, nos lembra que a ficção continua a ser o melhor jeito de pensar a vida vivida. Continua a ser o caminho de mistificação que pode desmistificar a fantasia tão falsa da realidade cotidiana.

 

 

Evandro Affonso Ferreira. O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. Rio de Janeiro: Record, 2012.

4 pensamentos sobre “O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira

  1. Desejo a você Júlio e familiares, como aos amigos leitores desse blog um feliz natal e um 2014 cheio de sucesso e ótimas leituras. abraços

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