Testemunho inconsciente e De olhos fechados são os dois primeiros livros de Gianrico Carofiglio. Dúvidas da razão é o terceiro.
São também os primeiros casos do advogado Guido Guerrieri e dificilmente poderiam ser chamados de policiais. São, sobretudo, histórias de tribunal, que na estrutura geral lembram os incontáveis seriados televisivos de advogado.
Aparentemente demorou um pouco para que Guerrieri se dedicasse também às investigações, como a que marca sua quarta aventura, As perfeições provisórias.
Em Testemunho inconsciente, De olhos fechados e Dúvidas da razão, o encontramos às voltas com complicados casos jurídicos.
No primeiro, um imigrante africano em Bari é suspeito de seduzir e matar uma criança. Guerrieri o defende e abre espaço para a discussão da imigração e do preconceito contra extracomunitários, questão atualíssima em toda a Itália, e particularmente no sul do país.
No segundo, Guerrieri ajuda a promotoria num processo de violência doméstica de um figurão de Bari, filho de um figurão maior ainda, contra sua ex-mulher. O tema da pedofilia reaparece em três breves capítulos, narrados em primeira pessoa e por outra voz, aparentemente desvinculados da trama central. No fim do livro as história se conectam.
No terceiro, um estranho caso de tráfico internacional de drogas envolve um desafeto da infância de Guerrieri e o faz buscar pistas improváveis para tentar a absolvição do acusado — o advogado porém não chega a se transformar num detetive. Simultaneamente, se esforça para não se apaixonar demais pela mulher do cliente. As ambigüidades pessoais, as sombras do passado, o risco da falta de ética, as dúvidas da razão e da imaginação o perseguem.
Em todos, Carofiglio reconstroi o quotidiano de seu protagonista, que circula por tribunais, bares e memórias. A separação da mulher abre Testemunho inconsciente e o lança numa espécie de vazio pessoal; no mesmo livro, outra relação surge, mas seu prosseguimento, em De olhos fechados, não aplaca a sensação de solidão que corta a construção e o desenvolvimento do advogado Guerrieri. A abertura de Dúvidas da razão traz nova separação e o deixa à deriva.
Nos três livros, pequenas histórias paralelas deixam pistas para o futuro do advogado e insinuam histórias a serem recuperadas em livros posteriores. Dessa forma, o escritor barês assegura, por trás da especificidade de cada volume, o caráter orgânico e articulado de seus relatos: podem ser lidos separadamente, mas é melhor que sejam conhecidos no conjunto.
E a leitura desse conjunto, embora ainda incompleta (A arte da dúvida, livro teórico sobre arguições, me espera sobre a mesinha que fica ao lado da poltrona preferida), exige a revisão de uma das sentenças que abriram esta resenha: não, não é tão difícil chamar esses livros de ‘policiais’.
Apesar de eles não trazerem a equação habitual da narrativa policial — crime/investigação/solução —, Carofiglio explora passo a passo os procedimentos epistemológicos que sustentam a ficção policial: a busca do indício (acintosa ou discreta) antecede a construção da razão, que esclarece o mistério ou, mais adequadamente no caso, permite encontrar uma solução que afaste as névoas que cobrem a trama.
Não custa lembrar, ainda, que foi arbitrário o estabelecimento de procedimentos rígidos para o gênero policial e que Edgar Allan Poe, seu provável criador, preferia dizer que escrevia histórias de raciocínio, e não de suspense.
Não custa lembrar, sempre, que dois dos mais notáveis discípulos de Poe — G. K. Chesterton e Jorge Luis Borges — insistiram que Poe não criara uma forma de escrever, mas um tipo novo e inesperado de leitor, aquele que insiste em enxergar dúvidas e buscar surpresas naquilo que lê.
Por isso, talvez os livros de Carofiglio protagonizados pelo advogado Guerrieri sejam mais fieis à matriz da narrativa policial do que muitos dos que pretenderam reproduzi-la e, na verdade, criaram uma camisa de força para o gênero, banalizando-o e limitando-o.
Resta, no entanto, um grande, insolúvel mistério: por que nossos editores de obras policiais (e as coleções são tantas!) não traduzem e publicam seus livros no Brasil?
Gianrico Carofiglio. Testimone inconsapevole. Palermo: Sellerio, 2002.
Gianrico Carofiglio. Ad occhi chiusi. Palermo: Sellerio, 2003.
Gianrico Carofiglio. Ragionevoli dubbi. Palermo: Sellerio, 2006.
Paisagens da Crítica publicou, em 1º de novembro de 2010, resenha sobre outro livro de Carofiglio, a quarta aventura de Guido Guerrieri, Le perfezione provvisorie. Clique aqui para lê-la.