Redor, de Masé Lemos

Redor é pequenino, uma espécie de aleph – ponto luminoso que olhamos e, nele, se sucedem inúmeras imagens de tempos e gentes distintas. Porque a poesia de Masé Lemos combina lugares e mistura tempos, inventa sucessivas metáforas para, em seguida, abandoná-las. E partir.

O signo da partida talvez seja, inclusive, o mais destacado – ou o segundo mais – do livro, dividido em quatro partes assimétricas: “Não deixe de ter em vista esse termo”, “Poesia impura ou elegias a Tarkos”, “Malazarte”, “Redor” e “Coisas”. Começa misturando poemas em verso e em prosa, num registro colado ao quotidiano, mas que sempre se ressente de tal proximidade e opta pelo distanciamento crítico, às vezes irônico, normalmente risonho. Ao se afastar para olhar, porém, a poesia de Masé Lemos reforça a estranheza e indica que, mesmo falando de dentro do dia-a-dia, está – repitamos Ana Cristina Cesar, sem a angústia – a ponto de partir.

A elegia-homenagem a Tarkos aceita o prevalecimento da prosa, assume a repetição variada e o ritmo quase-agônico da oralidade. Ao imergir no mundo e na dicção do poeta francês, novamente a sensação que deixa ao leitor é de despedida – idéia inevitável diante da morte recente do homenageado, mas não só: é sobretudo a força da língua e da linguagem que percorre o mundo de verdade, desmistificado, para isolá-lo e, ao mesmo tempo, revelá-lo. De novo, Masé está dentro como quem está fora, se descolando.

“Malazarte” retoma o caráter de crônica de “Não deixe de ter em vista”, mas agora o tempo presente fica em segundo plano; é o passado que prevalece e se destaca, mesmo quando a cena é contemporânea ao texto – porque o olhar se separa do hoje vivido e sonda o que veio antes, com as imperfeições e impertinências da memória, mas também com o devido distanciamento que permite a interpretação-compreensão do passado.

“Redor” e “Coisas” privilegiam o prosaico e, novamente, a perspectiva do narrador é o tema principal. A combinação do verso com a prosa poética reforça a indefinição medida do livro. A sensação de estranheza, agora, é principalmente do leitor, que pôde se reconhecer, desconfortável, no olhar do narrador, mas também aprendeu, com o passar das páginas de Redor, a aceitar o isolamento da voz lírica e sua dificuldade de fixação, sua desidentidade, sua vagueza e itinerância.

Porque Masé Lemos parte do comum para falar de outro comum – mas raramente reconhecido: o estrangeirismo do olhar poético, sua disposição à errância e à distância, sua tensão contínua e a vocação para o deslocamento. O enigma da chegada – já alertou Naipaul – é equivalente ao da partida; difícil é estimar o próximo passo. Talvez por isso Masé fale muito de partidas, mas, em sua poesia refinada, coloque outro signo acima deste: o da marginalidade, no sentido estrito. E faz, com delicadeza e contundência uma poesia que, afinal, é das margens – com a carga metafórica e metonímica de um lugar que é de encontro, separação e porosidade. Uma poesia do redor.

Masé Lemos. Redor. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007

Carne viva, de Paulo Francis

Carne viva tem um personagem apenas, que aparece por trás dos demais e impõe suas opiniões ao narrador: é o autor. E é ele, provavelmente, que os leitores buscam quando se dispõem a seguir as aventuras do banqueiro Francisco Guerra e atravessar os rituais de sexo e dinheiro da alta sociedade carioca. Porque esse autor é Paulo Francis – que dispensa apresentações.

Carne viva foi finalizado um pouco antes de Francis morrer, onze anos atrás. De alguma maneira, prossegue a saga de Cabeça de papel (1977) e Cabeça de negro (1979). Mas só de alguma maneira. Afinal, os romances anteriores de Francis – e também as novelas de Filhas do segundo sexo, de 1982 – são mais ambiciosos e mais complexos, tanto na estrutura quanto na construção dos personagens, mesmo quando caricatos ou francamente ridículos. Trazem discussões amplas e, às vezes, exaustivas.

A leitura de Carne viva, ao contrário, é agradável e rápida. O universo social e intelectual que mapeia é restrito, superficial, banal. É o Brasil que perdeu o gosto pelo pensamento e aceitou os modismos e a decrepitude – sem antes ter atingido o auge. É o Brasil na voz e na perspectiva de Francis, que alardeou, nos jornais e na televisão, o desatino da produção cultural e da política nacional dos anos militares em diante. Curioso, e triste, é que, ao vê-lo ou lê-lo, todos o achavam inteligente ou exótico, o amavam ou detestavam, mas dificilmente pensavam no que dizia, nem que fosse para discordar com algo mais do que um resmungo ou um adjetivo fácil e óbvio.

Nesse sentido, seu último romance pode ser lido como uma espécie de testamento. Nele, está sua entonação altiva, estão seus julgamentos peremptórios e, inúmeras vezes, avassaladores e temerários. Estão lá suas ironias e o ritmo da fala – entrecortada e variada. E também as metáforas que costumava usar ou as gírias fora de moda, com sabor dos anos sessenta, que intercalava em frases iniciadas no registro culto da língua. Sobretudo, Carne viva traz sua inquietação e sua inquietude: movimento e desassossego sob um olhar arguto e amargurado, em que o mal é inevitavelmente o homem.

O homem corroído de que Francis fala tem muitas caras: do burguês tosco ou culto, mas sempre oportunista, ao intelectual que segue a trilha dos modismos e despreza o que não o espelha; do capitalista cínico, que defende publicamente a ética e está sempre disposto a aceitar uma negociata privada, ao idealista cuja ingenuidade se divisa com a ignorância. Me diga, leitor: você não conhece esses personagens? Não convive com vários deles, talvez com todos? Não é inevitável que, após identificá-los, sinta um imenso desconsolo? Pois é essa a sensação que a leitura de Carne viva nos deixa.

Apesar de seu realismo enviesado, mas contundente, Carne viva não é um grande livro. O escritor não chegou aos pés do jornalista e do polemista. E talvez fosse mesmo impossível que, algum dia, Francis conseguisse neutralizar a força de sua expressão – principal origem dos amores e dos ódios, bem mais do que suas opiniões – e obtivesse o efeito imaginativo que a ficção tem que ter. Talvez fosse impossível que Francis não tentasse – militante à sua maneira – convencer o leitor. Talvez fosse impossível que ele não se impusesse, corpulento, a seus personagens e a seu narrador.

Quem conviveu com Francis conta que sua imagem pública contrastava absolutamente com sua atitude na intimidade, quando era receptivo e doce. Inevitável pensar que também isso pesou na escritura de Carne viva. E que a imposição do autor à obra foi tamanha que conduziu, até, para um desfecho relativamente lírico – lirismo amargo, mas sempre lirismo.

Paulo Francis. Carne Viva. São Paulo: Francis, 2008

Austerlitz, de W. G. Sebald, por Julia Bussius

Austerlitz, de W. G. Sebald

por Julia Bussius

Austerlitz, de W. G. Sebald (ou Max Sebald, como ele preferia ser chamado), é uma narrativa extraordinária, infelizmente ainda não traduzida no Brasil [a edição em língua inglesa, porém, pode ser encontrada facilmente e por preço razoável]. O autor alemão, nascido em Wertach, na região do Allgäu, em 1944, viveu a maior parte de sua vida na Inglaterra, onde lecionou literatura austríaca em algumas universidades e coordenou um centro de estudos sobre tradução. Faleceu em 2001, ao sofrer um ataque do coração enquanto dirigia seu carro. Antes de Austerlitz, apenas dois de seus livros foram traduzidos no país: Os emigrantes e Os anéis de Saturno, ambos pela Record e ambos imperdíveis.

O título desta obra não se refere à estação de trem em Paris ou a uma das batalhas de Napoleão, e sim a um homem que tem sua vida assombrada pela catástrofe. Em 1939, Jacques Austerlitz embarcou num Kindertransport – trem que levava crianças judias para fora do país – deixando Praga, sem mesmo ter completado cinco anos de idade, para ir à Inglaterra, onde seria adotado por um pastor calvinista e sua esposa. Seus novos responsáveis, que levavam uma vida sombria e infeliz na pequena cidade de Bala, País de Gales, afastaram o menino de qualquer contato com seu passado. Seu nome verdadeiro é revelado apenas após a morte do casal, e a partir desta palavra, que lhe soa totalmente estranha, o imenso e triste vazio de sua história surge de modo irreparável.

O narrador – como Sebald, um alemão exilado na Inglaterra – conhece Austerlitz numa viagem à Antuérpia, Bélgica, onde iniciam um diálogo muito peculiar, permeado por relatos de história da arquitetura, assunto dos estudos de Austerlitz, e por descrições de melancólicas paisagens naturais. O primeiro encontro ocorre no final dos anos 60, e há uma lacuna de quase trinta anos até o próximo contato entre os dois.

Quando, por acaso, se reencontram em Londres, Austerlitz dá inicio à narração de sua história, descoberta ao poucos, à medida que não pode mais impedir o surgimento de seu passado desconhecido. Durante anos, ele tenta fugir de qualquer vestígio sobre suas origens – até mesmo seus estudos de história não avançam os limites do final do século XIX. E sem compreender bem o porquê, vive atormentado, algo que o torna esquivo e melancólico e muitas vezes o leva a sérias crises de nervos – passando dias de desassossego absoluto. Contudo, as lembranças teimam em persegui-lo e, aos poucos, ele começa a recolher memórias deste passado enevoado, que passa a adquirir forma. Ele procura por seus pais desaparecidos, seguindo os lugares e as pistas de como suas vidas se extinguiram. Revisita as cidades que havia soterrado e reencontra as paisagens e línguas de sua infância.

A escrita de Sebald fala da memória como algo fundamental. A melancolia de seus personagens é uma forma de resistir ao esquecimento. Como um colecionador, ele reúne histórias, fotos (sempre presente em seus livros), desenhos, mapas, notícias, lugares e pessoas – tentando encontrar sentido no presente por meio destes cacos do passado. O tempo e a memória são a matéria de reflexão deste autor, que nos alerta para algo fundamental: não se pode enterrar o passado (sua maior crítica à Alemanha do pós-guerra, que encobriu os anos de atrocidade com o desenvolvimento de uma economia fortíssima).

Os diálogos do livro são contínuos, e não estão indicados por aspas ou travessão. As falas do narrador, Austerlitz e dos outros personagens se entrelaçam o tempo todo, como no fluxo de uma narrativa oral. Sebald já foi apontado como aquele narrador que Walter Benjamin julgava ter desaparecido no mundo moderno. Ele é um exímio contador de histórias, e nos deixou obras literárias sensíveis como esta, com a capacidade de tocar qualquer pessoa que, com o mínimo de lucidez, tenha sobrevivido ao catastrófico século XX e a todas as suas idiossincrasias.

W. G. Sebald. Austerlitz. São Paulo: Companhia das Letras, 2002

Este comentário foi publicado originalmente em 1º de maio de 2006, no endereço anterior de Paisagens da Crítica. É republicado agora devido ao lançamento da edição em português de Austerlitz.

Julia Bussius é jornalista, historiadora e estuda a obra de W. G. Sebald.

Coleção Sangue na Vinha, de Jean-Pierre Alaux e Noël Balen

Bodas de ouro em Yquem, Desvendando Margaux e O ritual de Bordeaux misturam investigação policial com grandes vinhos. O leitor, no entanto, degusta o livro com a impressão de que lhe foi servido um vinhozinho qualquer – aquele chileno mais-que-batido, que aceita na casa dos parentes para não parecer esnobe nem desfeita.

São os primeiros volumes lançados no Brasil da Coleção “Sangue na Vinha” que, apesar do nome meio trocadilhesco, parte de uma idéia genial. Afinal, o que pode ser melhor do que ler um bom policial acompanhado de um bom vinho? Ou, pelo menos, sonhando com um dos rótulos que dão nome aos livros: Château d’Yquem – o maior de todos os vinhos de sobremesa –, o charmoso e elegante premier grand cru classé de Margaux e (ainda que o título da tradução brasileira omita) o mais cultuado de todos os bordaleses, Pétrus.

Na França, a coleção – escrita por Jean-Pierre Alaux e Noël Balen – já tem dezoito volumes, ultrapassa as fronteiras de Bordeaux, circula por quase toda a França e até invade os domínios espanhóis. Difícil é brindar ao sucesso. Porque a idéia é genial, os vinhos, impressionantes, mas os romances são muito fracos. O problema não é a inverossimilhança de um enólogo-detetive, que interrompe seguidamente suas provas para investigar crimes escabrosos. Afinal, se existe rabino-detetive e pelo menos um grande padre-detetive – o Padre Brown -, por que não um enólogo? É curioso, pelo menos, além de retomar a óbvia associação entre a investigação e o procedimento analítico, função primordial de um enólogo. Sem contar a brincadeira de situar um enólogo inglês na França, cujo nome – Cooker – nos faz pensar imediatamente no crítico americano Robert Parker, que os bordaleses adoram e os borgonheses deploram. É quase impossível que o leitor não perceba a referência a Parker. Os autores, no entanto, acharam conveniente não deixar margem a qualquer dúvida e se preocuparam em destacar a marca da caneta que Cooker usa – adivinhe qual é.

Mais do que um exemplo, aí está a razão da fragilidade de Sangue na Vinha. Tudo é óbvio e oferecido facilmente ao leitor. As frases e os parágrafos curtos e diretos, sem qualquer tratamento literário, não exigem o manejo de nenhuma pequenina célula cinzenta. Os três livros se comprazem em se confinar no universo dos clichês. Clichês mesmo, não as marcas habituais do gênero policial: frases feitas, personagens caricatos, metáforas óbvias e baldias. Um ou outro exemplo: a mulher de Cooker “faz-se carinhosa aos vapores perfumados do banheiro”, um amigo considera “um ponto de honra preencher mais tarde essa pequena lacuna”, as pessoas “raramente evocam esse período doloroso” e os silêncios “se eternizam”; sobre a empregada da casa de outro amigo de Cooker, “A tez amarelada e os cabelos sem brilho presos num pequeno coque se integravam às mil maravilhas na decoração desbotada do salão.”

Se tentarmos avaliar a trama misteriosa a partir de seus elementos genéricos, a coisa fica mais feia ainda. Sangue nas Vinhas incorre em quase todos os pecados que, no início dos anos 1930, Borges elencou como erros imperdoáveis dos praticantes do gênero. Quase toda a motivação e a investigação dos crimes é arbitrária, carente de lógica. Por isso, o leitor nunca tem as informações necessárias para o entendimento ou a decifração dos crimes. Os personagens-assassinos aparecem de repente, quase no fim dos livros, só para serem acusados. Nos três casos, não há método investigativo e nem desenvolvimento lógico: a decifração se dá por acaso. Além disso, o leitor acaba a leitura sem explicações. Por que o criminoso de O ritual de Bordeaux – nome que o editor brasileiro deu a Saint Pétrus et Le Saigneur – realizava o ritual do título? Aparentemente, os autores esqueceram de explicar. Ficamos sabendo, ao final do livro, o motivo dos crimes, mas não a razão pela qual o criminoso praticava o tal ritual. O vinho de Yquem até tem relação com os crimes do volume dedicado a ele, mas Yquem é pouco mais que um cenário para a trama. Margaux do livro, na verdade, é o nome da filha de Cooker – e o château aparece quase como um trocadilho.

Uma pena. Porque a idéia foi boa e a garrafa – digo, a edição – é bem cuidada, com capa elegante e glossário ao final. O problema é que a leitura deixa um resíduo ruim, espécie de retrogosto desagradável para quem esperava beber bem.

Jean-Pierre Alaux & Noël Balen. Bodas de ouro em Yquem. Rio de Janeiro: Rocco, 2007 (original: 2004; tradução: Alcida Brant)

Jean-Pierre Alaux & Noël Balen. Desvendando Margaux. Rio de Janeiro: Rocco, 2007 (original: 2004; tradução: Alcida Brant)

Jean-Pierre Alaux & Noël Balen. O ritual de Bordeaux. Rio de Janeiro: Rocco, 2008 (original: 2005; tradução: Alcida Brant)

O balneário, de Manuel Vázquez Montalbán

O balneário é um livro datado – bem datado – e sua publicação, hoje no Brasil , soa anacrônica.

Lançado originalmente em 1986, O balneário não resistiu ao tempo. Lê-lo agora é decifrar um conjunto de aflições que parecem risíveis e exóticas. Sua trama mirabolante encara os resíduos da Guerra Fria e da Espanha franquista, ambas agonizantes, mas persistentes. Franco já morrera há anos e a glasnost de Gorbachóv era definitiva; no entanto, os mortos não haviam sepultado seus mortos e o espectro do passado recente ainda rondava as preocupações políticas de Manuel Vázquez Montalbán, o autor.

Por isso, ele escreveu um romance que não é propriamente policial, nem propriamente político, nem propriamente histórico. A bem da verdade, não é propriamente um romance, perdido em divagações gerais, personagens caricaturais e incompletos, em uma trama esvaziada e – alerta um dos personagens – de inacreditável inverossimilhança.

Pepe Carvalho, o detetive habitual de Vázquez Montalbán, exemplifica bem o deslocamento de tudo: gourmet e glutão, está encerrado num spa. Junto com ele, gente de muitas nacionalidades (internas & externas à Espanha) compõe um suficiente painel europeu. Quem o coordena, são os suíços, neutros proprietários e administradores do empreendimento. Tudo é dado de saída: nem o leitor desatento deixa de perceber o jogo metafórico que se pretende montar.

O humor do início do livro pode até lembrar outros livros de Vázquez Montalbán e a crueza cínica de Pepe Carvalho, mas dura pouco. Rapidamente começa uma série de rocambolescos assassinatos, que não param mais e são acompanhados pelas atitudes ridículas de todos. Na Europa dos anos 1980, afinal, ninguém sabia o que estava acontecendo ou ocorreria, e todos recorriam a explicações adequadas ao mundo de antes, mas não ao de agora. Isso o leitor também percebe facilmente.

A estrutura da narrativa é também logo decifrada pelo leitor: típico caso do policial em local fechado, sem que haja interferência externa ou possibilidade de fuga dos envolvidos, que persistem confinados, passando fome no spa, até que se dê o caso por liqüidado. Todos os clichês que algum dia alguém imaginou para uma história de investigação dão o ar da graça: passagem secreta, vultos que se esgueiram nas sombras, identidades trocadas, policiais obtusos, mulher fatal, disputas familiares, interesses financeiros. Nada escapa, nem se esconde dos olhos do leitor. Ele é forçado a enxergar absolutamente tudo.

Já a explicação final – cena habitual – é tão esdrúxula e incompleta, que o leitor percebe (se ainda não havia notado) que Vázquez Montalbán de fato não estava nem longinqüamente preocupado com a história que escrevia: queria transmitir sua mensagem política, e pronto. Nisso O balneário se parece com o quase infinito e infinitamente chato Milênio – livro de despedida de Pepe Carvalho – e se diferencia de suas saborosas aventuras – Os mares do sul, O quinteto de Buenos Aires, A rosa de Alexandria e tantas outras.

A única coisa que o leitor não consegue entender é porque o livro foi editado agora, vinte e um anos depois, no Brasil – o que talvez só se explique pelo prestígio do autor e pela capacidade do mercado de absorver histórias policiais de autores conhecidos e reconhecidos. É difícil imaginar outra razão. Ou talvez não haja razão alguma – o que não é de todo mau: afinal, algum mistério um romance policial tem que trazer. Que seja o do motivo, talvez indecifrável, de sua publicação.

Manuel Vázquez Montalbán. O balneário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (original: 1986; tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht).

Paisagens da Crítica já publicou comentários sobre outros livros de Manuel Vázquez Montalbán: Quarteto (10.2.2006), A rosa de Alexandria (8.5.2006) e Milênio (21.2.2007). Todos no endereço antigo: http://paisagensdacritica.zip.net

Dea Fenelon e a beleza da história, por Marcos Silva

Dea Fenelon e a beleza da história

por Marcos Silva

Falarei de Dea Fenelon a partir de um poema de Charles Baudelaire:

A beleza

Eu sou bela, ó mortais! um sonho mineral,

É meu seio, onde cada magoou-se por vez

Feito para inspirar ao poeta cortês

Amor eterno e mudo, trama material.

Governo do azul qual um mistério de esfinge;

Junto o branco de cisnes a coração de neve;

Odeio o que desloca a linha – mesmo breve –,

Nunca choro nem rio do que me atinge.

Os poetas, diante de minha atitude,

Que costumo emprestar de nobres monumentos,

Consumarão a vida a buscar que me estude;

Tenho, p’ra fascinar amantes de momentos,

Uns espelhos que dão mais beleza a tudo:

Meu olhar, meu grande olhar, clarões sempre veludo.

A beleza, nesse poema de Baudelaire, assume dimensões de durabilidade e dureza (pedra), mescladas a faceta orgânica e sexuada (seio, pode ficar prenhe e amamentar), além de sentimental (magoar-se): indissociavelmente finita e infinita. Ela é eterna, simples mortais são os outros, os destinatários dos versos. Charles Baudelaire evoca duração mineral e sensibilidade humana, eternidade ideal e limitação temporal própria à matéria, mesmo à pedra e ao metal: estátuas se desgastam. A beleza se desloca entre o que é vivo e o que persiste, dirigindo-se aos mortais como se estivesse além da vida, mas integrando esta, acenando com a eternidade para retornar à finitude – trama material, mágoa, mudez no reino da palavra que é poesia. O acesso à eternidade se dá através desses “amantes de momentos” que são os poetas.

A beleza figura, portanto, como perspectiva de o ser humano sobreviver depois da morte, espírito palpável no mundo da matéria – história, que diferencia homens e mulheres de uma pedra, ou uma folha caída de árvore (Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro). A vontade de equilíbrio (“Odeio o que desloca a linha”) se articula à permanente prática da sedução (“para inspirar ao poeta cortês”, “p’rá fascinar amantes de momentos”). Embora se compare a mistério de esfinge, essa beleza retorna ao mundo material, abandonando o espaço do mito, para caracterizar seu ser – o branco de cisnes, o gélido de neves (que se derretem ao sol), o equilíbrio, o ir além das emoções imediatas. Mas esse é o preço para atingir emoções ainda maiores, complexas, que exigirão uma vida dos poetas para serem entendidas, e outras vidas de outros poetas.

Sua existência se sintetiza na capacidade de fazer os amantes – os poetas – se verem ainda mais belos nos olhos dela mesma, espelhos iluminadores, que iluminam muito além dos semblantes de quem os mira, iluminam o mundo. A poesia, consequentemente, faz os homens se verem mais e melhores. Se os simples mortais se vêem no espelho da beleza, isso pode nos fazer concluir que a eternidade dela está um pouco também no caráter provisório deles.

A primeira vista, pode parecer que a voz de uma historiadora, como Dea Fenelon, é alheia a esse mundo da poesia, até porque o inaugural Aristóteles cuidou de separar meticulosamente os historiadores, servos do que aconteceu, dos poetas, videntes do possível (Aristóteles, Poética). Mas alguns poetas e historiadores, muito tempo depois, ousaram embaralhar o raciocínio do grande mestre grego, ao falarem do que estava acontecendo a seu redor (Rimbaud e a Comuna de Paris) ou ao valorizarem a história como potencialidades (Benjamin e a História a contrapelo; Arthur Rimbaud, “Canto de guerra parisiense”). Quando a escrita assume um papel tão central num filósofo e historiador como Michel Foucault, ou quando o referencial factual (interpretado) pesa tanto para um poeta como Carlos Drummond de Andrade, é hora de entender que a verdade da beleza também freqüenta o conhecimento histórico, e vice-versa (Michel Foucault. História da loucura na idade clássica).

Conheci Dea Fenelon em 1978, através de Olga Brites, que iniciava o Mestrado em história na PUC/SP, ao mesmo tempo que eu começava meu Mestrado na mesma área na FFLCH/USP. Olga me falou, com extremo entusiasmo, das aulas de Dea, e eu vim assistir a uma delas, numa manhã de sábado. Pedi autorização para acompanhar o curso como ouvinte, fascinado com a liberdade e o rigor de Dea, mesclados à evidente generosidade de quem via na docência um ato digno de pensamento e uma prática social muito clara de socialização de saberes. Dea falava dos clássicos com um respeito indagador de quem queria ainda mais. E insistia com os jovens iniciantes sobre a necessidade de uma insatisfação fundante diante dos saberes existentes.

Essa experiência se desdobrou em uma amizade de muitos anos. Sempre aprendi com Dea sobre a história como multiplicidade, invenção e risco – histórias. Não só o que aconteceu, mas também o que poderia ter acontecido, o que está acontecendo ou poderia estar acontecendo. Acompanhei as ampliações e metamorfoses de seus interesses temáticos e teóricos: História do trabalho, História popular, Patrimônio, Memória, Arquivos, Museus – Ensino de história sempre. E admirei sua imensa capacidade de batalhar pelo pensamento, sem renunciar a polêmicas mas também convivendo com diferenças.

Trabalhamos juntos na coordenação de uma Proposta curricular para o ensino de história na rede pública paulista, entre 1986 e 1988. Um balanço down dessa experiência incidiria sobre golpes baixos que sofremos naquela época, na mídia e na academia, e seus desdobramentos posteriores, até data muito recente. Mas eu prefiro um inventário de conquistas: houve debate, os interessados discutiram intensamente seus universos de pensamento, permaneceu uma memória de que o ensino de história é importante para a sociedade e objeto de disputa entre diferentes projetos políticos e teóricos. E num campo de conhecimento muito marcado pelo mais aristocrático conservadorismo, ser acusado de militância é até um elogio, descontada a criminalização da política.

Durante muitos anos, não fomos convidados para fóruns dedicados ao ensino de história. Em 2006, não por coincidência, chamaram-nos para duas diferentes mesas-redondas no VII ENPEH (Encontro nacional de pesquisadores em ensino de história), realizado em Belo Horizonte. Lembro-me de ter comentado com ela que alguma coisa estava mudando – It’s getting better all the time, como diziam os Beatles, nos anos 60. E não me aborreci quando nos trataram, até carinhosamente, como dinossauros do rock: éramos Rolling Stones felizes.

Em seus escritos mais recentes, Dea nos lembrava que a pluralidade não era apenas da memória social, era também da história erudita. Deve ser difícil para os que pretendem deter o monopólio da fala sobre história ouvir algo assim. É tarefa para nós, que lutamos contra tais monopólios, retomar essa generosa discussão.

Dea Fenelon, para sempre entre nós, como legítima portadora da beleza da história, com seu «grande olhar, clarões sempre veludo – Uns espelhos que dão mais beleza a tudo», evidencia o acerto do poeta: todos os homens e mulheres são mortais, mas a beleza que eles produzem vence a morte.

Através de Dea, a beleza da história venceu.

Dea Fenelon, historiadora e professora da Unicamp e da PUC-SP, faleceu no dia 20 de abril de 2008.

Marcos Silva é professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e autor, entre outros, de Prazer e poder do Amigo da Onça (Paz e Terra, 1989) e Dicionário crítico Câmara Cascudo (Perspectiva, 2002).

Paisagens da Crítica já comentou um livro de Marcos Silva: Câmara Cascudo, Dona Nazaré de Souza & Cia. (14 de agosto de 2007). Está no endereço antigo: http://paisagensdacritica.zip.net