Carta a D. conta – já diz o subtítulo – a “história de um amor”. Amor de André Gorz por sua mulher Dorine, com quem foi casado durante 58 anos, até que ambos se matassem em setembro do ano passado.
Judeu austríaco, Gorz fugiu do nazismo para a Suíça e, depois, se fixou na França, onde se tornou um dos jornalistas e pensadores políticos mais influentes dos anos 1960. Seguidor de Sartre, combinou existencialismo com marxismo, fundou e militou no maoísmo tão em voga da época. Celebrado pelos estudantes que se revoltaram no 68 parisiense, voltou-se à questão ecológica nos anos 1970 e repensou as bases da ação política, refutando as teorias salvacionistas (com suas pitadas – grandes pitadas – de ingenuidade política) da década anterior.
Mas a história que ele conta em Carta a D. acompanha apenas de viés sua trajetória política e intelectual. Gorz prefere falar da convivência com Dorine: do primeiro conhecimento ao namoro e ao casamento, dos tempos de dinheiro curto à tranqüilidade financeira e emocional; da segurança e do afeto intermináveis à demora de reconhecer a importância da mulher em sua vida. E fala também da angústia de descobrirem que um erro médico provocou em Dorine uma doença progressiva que lhe limitava os movimentos e trazia dores enormes. Finalmente, explica como saiu do mundo intelectual para cuidar de Dorine, exilados numa casa de campo, cercados de árvores e de uma serenidade que permitiu prolongar sua vida por mais de vinte anos. Em linhas gerais, reconhece que seu trabalho teórico se fez primeiro a despeito de Dorine (que tolerava suas noites infinitas de estudo); depois, com Dorine para, ao fim, ser para Dorine.
O leitor, que sabe antecipadamente o desfecho da história, cruza as primeiras páginas do livro com aflição. Em seguida, a troca pela surpresa de ver a virada de Gorz, abandonando a política e privilegiando o amor. Só no final compreende que a mudança, afinal, não foi tão profunda, que o amor passou a ser o princípio de sua conduta política, confundindo-se com ela: foi ele que o fez investir contra a tecnomedicina que sacrificava Dorine, foi ele que o aproximou da reflexão sobre a natureza e os riscos que ela corria, foi ele que o fez enxergar a ficção da vida e a prolixidade do real.
Na verdade, a variação significativa na trajetória de Gorz aconteceu quando ele notou – graças à Dorine – que o espaço privado não se distinguia tão agudamente do público, como acreditavam os jovens dos anos 1960. Quando percebeu que as doutrinas teóricas que perseguiu com afinco por décadas eram (e sempre são) “próteses psíquicas”: fornecem anteparos à vida e tentam nos distanciar dela. Quando descobriu a intimidade como potencialmente revolucionária – às vezes mais do que uma barricada na rua – porque nela se vive o presente desmistificado, nela não se troca a vida vivida pela imaginação idealizada de futuro. Mais: que a intimidade é lugar de riscos mais concretos do que o espaço coletivo, onde as angústias se dispersam e a aflição pode ser controlada por algum esquema explicativo e redentor.
Tanta revelação permite que a aflição do leitor se transforme lentamente no reconhecimento que não há nada de trágico no fim da história de André e Dorine; ao contrário, foi o desdobramento previsível da história de um amor.
André Gorz. Carta a D. História de um amor. São Paulo: Annablume/Cosac Naify, 2007 (original: 2006; tradução Celso Azzan Jr.)