O crime do restaurante chinês, de Boris Fausto

O crime do restaurante chinês parece simples e pouco ambicioso. E é dos melhores livros nacionais de história publicados na primeira década desse século.

Boris Fausto reconstitui, a partir de jornais e documentos policiais, o assassinato de quatro pessoas perto da Praça da Sé, na manhã da quarta-feira de cinzas de 1938. O crime impressionou pela brutalidade e pela dificuldade de entender seu enquadramento no mundo em que se deu.

São Paulo, a princípio, era uma cidade acolhedora. Para cá vinham imigrantes de outras partes. Para cá vinham os que esperavam oportunidades que não havia por lá. Chineses, por exemplo. Ou lituanos, como o funcionário do restaurante, que encontrou os corpos imersos em sangue e violência. Ou, ainda, como o primeiro e principal suspeito, um negro de 21 anos, Arias de Oliveira, que viera de Franca para a capital no ano anterior.

O autor refaz a trama e percebe como a sociedade paulistana projetou, no caso do restaurante, todas as suas representações negativas e positivas. Identifica como asiáticos, europeus e negros – vindos de qualquer parte – eram vistos pela lente do quotidiano, tão distinta do discurso oficial que celebrava a capital vicejante dos paulistas. Reconhece o papel decisivo da imprensa na culpabilização do negro, suspeito da hora, e sua convicção de que os estudos frenológicos, em voga há meio século, faziam sentido.

No lugar da cidade acolhedora, Boris Fausto tece a imagem de uma rede intrincada de relações, confusas e oscilantes, que perfaz o sentido da nossa modernidade peculiar e expressa melhor o crescimento de São Paulo do que as múltiplas imagens tecnológicas que o modernismo dos anos 1920 projetara.

É pelo fio do miúdo, do detalhe – do micro que ilumina o conjunto – que enxergamos o cenário em que o negro Arias é acusado, forçado a confessar e, depois, isentado de culpa. A volta do parafuso se inverte quando outro negro, um diamante: Leônidas da Silva, redime o futebol brasileiro nos campos franceses da Copa de 1938.

Nem na culpa, nem na absolvição, porém, é o crime e suas circunstâncias que falam. Nem o processo investigativo, que se acredita científico e objetivo, mas varia ao sabor da imaginação popular. É a mudança do lugar do negro na imaginação de uma cidade confusa e incerta tanto de seu passado quanto de seu futuro (por mais que o superestime) que redefine os padrões de julgamento e de condenação ou absolvição. Que justiça?

A trama que Boris Fausto primeiro desvela para depois retecer é complexa e o livro mostra que não é simples, nem pouco ambicioso. É sofisticado e difícil no debate político e histórico que propõe, no diálogo com matrizes teóricas e metodológicas – principalmente as definidas pelo método indiciário.

Se não bastasse tudo isso para definir O crime do restaurante chinês como um achado e, dos melhores, em meio a uma historiografia da cidade de São Paulo que tantas vezes soa estagnada, o relato pessoal e autobiográfico no epílogo liqüida a fatura.

E nos faz perceber que nenhuma história faz sentido se não falar, de algum modo, à experiência do indivíduo. Não importa seu tempo e espaço. Não adianta supô-la isolada do coletivo – que não é. Ela sempre sopra no rosto de quem a viveu.

Boris Fausto. O crime do restaurante chinês. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

Paisagens da Crítica já publicou comentário sobre outro livro de Boris Fausto (em colaboração com Fernando Devoto): Brasil e Argentina. Um ensaio de história comparada (1850-2002), em 17 de março de 2006. A resenha está no endereço antigo do blog: http://paisagensdacritica.zip.net

A droga da obediência, de Pedro Bandeira

 

Para minha filha, sol de todos os meus olhares, no dia de seus dez anos

 

 

A droga da obediência foi publicado faz muitos anos. Em 1984, para ser mais exato.

 

Não vou listar aqui tudo que me liga ao livro, entre pessoas e lugares de que ele fala direta ou indiretamente.

 

Apenas lembro que o li pela primeira vez em 1985 ou 86. Eu já era adulto, 20 e poucos, e o livro era voltado ao público infanto-juvenil. Mesmo assim gostei da trama bem montada, da capacidade de compreender o mundo de quem tem 8 ou 13 anos, dos personagens que compõem “Os Karas” – grupo de jovens responsável pela investigação de uma trama complexa, com ares de ficção científica e forte metaforização dos riscos que cercam as crianças.

 

Pedro Bandeira, o autor, voltou a escrever aventuras da turma em outros quatro livros: Pântano de sangue, Anjo da morte, A droga do amor e Droga de americana! Todos fizeram sucesso.

 

De 84 para cá houve algumas reedições de A droga da obediência. A que está na minha mão, de 2003, indica 3ª edição e 198ª (!) reimpressão. Depois disso, deve ter havido outras. Num país que lê pouco e mal. Um fenômeno.

 

No mesmo tempo, porém, as crianças mudaram. O perfil do garoto ou da garota de 10 anos, em 84, é dinossáurico perto dos perfis atuais da mesma idade. Os gostos, que também têm sua história, também mudaram. Junto com os medos, de pais e filhos. Com as angústias e os laços de amizade – tema essencial do livro.

 

Vinte e cinco anos depois, resolvi relê-lo, temeroso. Será que A droga da obediência continuava a funcionar? Ou será que envelhecera enquanto seus leitores mantinham o frescor da quase-pré-adolescência?

 

E será que eu conseguiria perceber a diferença, agora aos 40 e poucos anos?

 

Antes de ler, dei um exemplar de presente à minha filha de nove anos.

 

Ela leu página a página, linha a linha. E soltou o veredicto: O melhor livro que já li.

 

Até também reli, mas nem precisava. A prova dos nove (e dos nove anos) tinha comprovado que os tempos e as vontades podem mudar, mas A droga da obediência continua atual e bom.

 

Pedro Bandeira. A droga da obediência. São Paulo: Moderna, 2003