Circuito fechado, de Ricardo Ramos

 

Circuito fechado é livro de um grande autor, excelente autor, que andou por anos esquecido ou quase esquecido: Ricardo Ramos.

 

Publicada originalmente em 1992, a obra funciona como um aleph do tempo então vivido: reconstrói o quotidiano de aprisionamento e aflição, lida penosamente com as impossibilidades, visita breves cenas de pessoas breves, em busca de detalhes prosaicos.

 

Os personagens parecem cercados, confinados numa vida de opções restritas e de limitadas possibilidades de expressão: fechados num circuito político sem liberdades e que gira em torno de eixos de contenção: prisão tão mais eficaz porque ampla e destituída de grades visíveis.

 

Não é apenas o Brasil do regime militar, no entanto, que surge na cena principal dos contos de Ricardo Ramos; se assim fosse, sua ficção talvez resultasse intranscendente, imediata e datada, comprometida com um presente absoluto.

 

Da mesma forma, seus diversos personagens caricatos não são meras banalizações ou simplificações baldias de personalidades irreversivelmente mais complexas e profundas. Ao contrário, eles expõem os limites do agir e do pensar num tempo de superficialidades, de imaginação e confrontos binários; são recursos de estilo, ironias que ultrapassam o nível da constatação e atingem o efeito crítico desejado.

 

Crítica, afinal, é interpretação e, para compreender aqueles incômodos dias, é preciso notar a extensão do sistema estabelecido, a heterogeneidade que se acomoda sob a aparência construída pelo discurso oficial, que se apresenta como unânime.

 

É preciso revelar a brecha, aquela leve fissura através da qual é possível se expressar. Na expressão —ou nos recursos em que ela se apoia, nas bases que inventa, na potência que adquire—, se reconhece o grande escritor; no caso, o grande contista, capaz de explorar as possibilidades da forma breve, de investir na tensão que lhe é inerente, na duplicidade das histórias que conta, nas tramas vigorosas e controladas, nos desfechos candentes.

 

Exatamente por isso, Ricardo Ramos ultrapassa a metáfora do título do livro e, em cinco contos homônimos —“Circuito fechado”—, diferenciados apenas pela numeração, entre parênteses, que se segue ao nome, consegue abrir, gradualmente, a caixa mágica e tenebrosa do sistema e da ficção.

 

De um lado —e conforme avança o desmembramento do circuito político—, revela-se que a ordem não é tão coesa, nem inarredável; que o aparente áporo pode se tornar, de súbito, uma flor. Sim (assume a narrativa): o desabrochar se interrompe, o que se abre também se fecha, não há garantia de escape fácil ou rápido. Mesmo assim, o circuito prossegue exposto.

 

De outro, e melhor, o circuito literário, estético, expõe seus mecanismos de construção, sua dinâmica interior cheia de alternativas, sua força encoberta, mas ainda intensa.

 

Assim é a forma breve quando bem desenvolvida; assim são os contos, inquietantes e fundamentais, de Ricardo Ramos.

 

 

Ricardo Ramos. Circuito fechado. São Paulo: Globo, 2012.

 

 

Mestres do Conto Latino-Americano

 

A Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, promove, entre abril e setembro, uma série de encontros gratuitos sobre contos e contistas latino-americanos.

 

A curadoria é de Davi Arrigucci Junior e os autores estudados são:  

– Machado de Assis (14/4, por Augusto Massi),

– Jorge Luis Borges (28/4, por Davi Arrigucci),

– Juan Carlos Onetti (5/5, por mim),

– Mário de Andrade (12/5, por Eliane Robert de Moraes),

– Aníbal Machado (19/5, por Murilo Marcondes Moura),

– Leopoldo Lugones (26/5, por Jorge Schwartz),

– Graciliano Ramos (2/6, por Erwin Torralbo Gimenez),

– Julio Cortázar (16/6, por Cleusa Rios),

– João Guimarães Rosa (23/6, por Ana Paula Pacheco),

– Juan Rulfo (30/6, por Marcos Piason Natali),

– Clarice Lispector (4/8, por Yudith Rosenbaum),

– Julio Ramón Ribeyro (11/8, por Samuel Titan Jr.),

– Dalton Trevisan (18/8, por Berta Waldman),

– Roberto Bolaño (25/8, por Laura Janina Hosiasson),

– Rubem Fonseca (1/9, por Fábio de Souza Andrade),

– Juan José Saer (15/9, por Adriana Kanzepolsky),

– Lima Barreto (22/9, por Antonio Arnoni Prado),

– Horacio Quiroga (29/9, por Pablo Gasparini).

 

Veja mais detalhes aqui.

 

Então você quer ser escritor?, de Miguel Sanches Neto

 

Então você quer ser escritor? é um livro de duplos.

Em primeiro lugar, porque reúne contos. A forma breve, por definição, traz pelo menos duas histórias: a que segue visível na superfície e outra, subterrânea, discreta, iminente.

Segundo, e principal: esses dezesseis relatos de Miguel Sanches Neto mostram impasses, conflitos, dessemelhanças.

“Sangue” nos fala do banal e do visceral; “Árvores submersas”, de grandeza e ridículo; “Animal nojento”, de afeto e angústia; “O tamanho do mundo”, de esperança e desconsolo; “Não comerás carne”, de redenção e angústia.

“Duas palavras” é épico e patético, combina ficção e história. “Manga verde com sal” sugere os tempos da vida: dois, muitos. “Redentor” mostra o dentro e o fora de cada um; “O último abraço”, bandeiriano, trata da vida que podia ter sido e da que foi.

“Na minha idade” contrasta realidade e irrealidade e “Seios de menino”, por meio da ambiguidade sexual, confunde passado e presente. “Jogar com os mortos” combina a iminência do sexo e os contrastes sociais. “Andar de bicicleta” é o jogo da visão contra cegueira, dos vivos e dos mortos.

“Para o seu bem” revela a vida na margem — espaço híbrido de pertença e desconexão. A regularidade e a mudança, ficar e partir, o miúdo e o universal compõem “Vestindo meu avô”. Finalmente, o conto que intitula o livro traça com ironia a crueza do trabalho ficcional, duplo por princípio, artístico ou ridículo, verdade e engano.

Mais do que o conteúdo cognitivo e conjuntural de cada conto, a duplicidade é estratégia narrativa. Miguel Sanches Neto investe na variedade de registros, linguagens e estruturas, desenha as histórias e revisita, aqui e ali, temáticas e preocupações estéticas de livros anteriores. Assegura assim a organicidade da obra e, ao mesmo tempo, afirma sua tensão interna.

Além disso, contar contos já sugere, no Brasil de hoje, uma posição algo assincrônica: por algum motivo, a maioria dos autores nacionais chegou à conclusão de que o país precisa de romances, abandonou a forma breve e passou a nos brindar com enxurradas de literatura prolixa, medíocre e diluída.

No conto, ao contrário, tudo visa à precisão, ao detalhamento. É assim que o prosaico se torna significativo, que ganhos e perdas jamais são despidos de complexidade. É assim que os duplos revelam aquilo que de fato são: uma percepção do outro e outra percepção de si.

Certo historiador torinês falou, anos atrás, que essa é a contribuição decisiva da ficção, seu impacto capaz de ultrapassar a fronteira (obviamente porosa) do literário: ela dá a distância, o prumo, a referência de um olhar que não se contenta com a própria perspectiva e precisa encontrar outras, confrontar(-se), desconfortar.

Os leitores que percorrem os relatos de Então você quer ser escritor? ressurgem assim da leitura: sabem que passearam pelos meandros da construção ficcional e sabem, também, que interpretaram um pouco mais, e melhor, outra ficção: a da vida.


Miguel Sanches Neto. Então você quer ser escritor? Rio de Janeiro: Record, 2011


Paisagens da Crítica publicou resenhas sobre outros oito livros de Miguel Sanches Neto.

Clique nos títulos dos livros para lê-las.

Venho de um país obscuro (15.8.2006);

Um amor anarquista (1.9.2006);

Chove sobre minha infância (10.10.2006);

Impurezas amorosas (23.1.2007);

Herdando uma biblioteca (10.8.2007);

A primeira mulher (1.9.2008);

Primeiros contos (27.12.2008);

Chá das cinco com o vampiro (22.05.2010).


Faca, de Ronaldo Correia de Brito

Faca, de Ronaldo Correia de Brito, é livro sobre o tempo. Cada um dos contos, onze, expõe uma de suas faces, que vão daquele Tempo com T maiúsculo, substância formadora dos homens — disse Borges —, a suas distintas percepções.

Os gestos dos personagens dependem da gravidade irregular da passagem das horas. Os anos tardam para mulheres como Donana, Aldenora, Delmira ou Ciça e o ritmo da vida externa se contrapõe à lentidão da vida, ao cadenciado que cheira à morte.

O anseio por novos tempos, porém, nem sempre as conduz ao futuro. Para elas e muitos dos homens — o Velho, Leonardo Bezerra, Otacílio Mendes, Anselmo Dantas — é mais o passado que dita o que virá do que a imprecisão presente.

Dependem, uns e outras, do que foi vivido, e nem sempre por eles mesmos. É como se, mais do que formadora, a substância do tempo os deformasse, pegajosa, insistente, e os fizesse perder de vista outros viveres.

Há, porém, eventos súbitos que interrompem a marcha demorada dos dias. Cortantes, arrebentam a cadeia da repetição e instauram outra possibilidade. O leitor, prisioneiro da tensa narrativa da espera, aprende, conto a conto, a aguardar o desenlace, faca de duas lâminas, momento que define uma vida, e ocasionalmente se espanta com o final de riso no lugar da angústia ou do horror — Davi Arrigucci observa, no posfácio, que também a surpresa do humor reitera a densidade do tempo que a antecede.

A se contrapor ao arrastado dos tempos, há ainda outra faca, a da prosa seca e direta, metafórica mas rasante, em que os contos são cifrados. Estes, talvez, os maiores ensinamentos que Ronaldo Correia de Brito deixa para o leitor: transpor o peculiar para o geral implica reconhecer os ritmos da linguagem; traduzir o específico no universal depende do respeito e da reinvenção das vozes que narram, evitando o artificialismo da imitação e condensando, em rápidas histórias, um tempo imemorial — essa matéria porosa.

Ronaldo Correia de Brito. Faca. São Paulo: Cosac & Naify, 2009

A casa deles, de Ana Paula Pacheco

A casa deles confirma a célebre observação de Ricardo Piglia: todo conto conta pelo menos duas histórias.

Curioso, no livro de estreia de Ana Paula Pacheco, é notar como os vários relatos se sobrepõem, alternam-se na profundidade e na superfície da narrativa, encadeiam-se texto após texto.

As vinte e duas histórias que compõem o livro são, quase todas, bastante breves. Frases curtas, em ordem direta, em geral na primeira pessoa. Os narradores são solidamente construídos, embora vivam na corda bamba: a firmeza da escrita contrasta com o impasse da vida narrada.

É este intervalo entre as duas instâncias, texto e vida, que primeiro chama a atenção na prosa de Ana Paula: os contos expõem perspectivas, olhares assimétricos que seguem na diagonal e resultam, inevitável, em algum desacerto.

Uma poética do enviesamento, da inquietude. Os narradores vivem sob a luz do olhar alheio, mas não se espelham nele: prosseguem em tensão. Por isso, sua dicção é instável, errática, às vezes na fronteira da insanidade. Sua razão é porosa, oca, deslocada.

O registro de Ana Paula persegue o desassossego dos personagens com contundência e elegância. O riso, quando surge, é medido e as metáforas, nunca excessivas, reiteram o terceiro olhar, do autor, que não tenta se eximir, que se manifesta nos pequenos detalhes da escrita, na miudeza do quotidiano próprio tornado estranho. Junto com a angústia, há ironia.

A palavra que quase escapa da boca, toda hora, é deslocamento. E ela definiria o livro se já não estivesse tão banalizada.

É essa infixidez, de resto, esse estar do lado de fora, que justifica o título kafkiano do volume, em que um é o outro, em que nossa casa sempre é a deles. É essa instabilidade que permite aos vários níveis do texto, às suas diversas instâncias, alternar as histórias que se contam e as que se lêem. É assim que um conto pode parecer continuação do outro e sua contraface. Que o conjunto de contos pode resvalar para outras formas, como a poesia ou, por que não?, o romance: ambos se manifestam aqui e ali.

Piglia estava certo ao falar da pluralidade de relatos da forma breve. Esqueceu-se, porém, de dizer o óbvio: só ocorre quando o conto não é banal e a narração é precisa — caso das histórias de A casa deles.

Ana Paula Pacheco. A casa deles. São Paulo: Nankim, 2009



A cidade ilhada, de Milton Hatoum

 

A cidade ilhada traz, pela boca de um de seus personagens, sua autodefinição: “ninguém pode ser totalmente outro”.

 

Afinal, a cada página do novo livro de Milton Hatoum, pensamos nos anteriores. E também nos sentimos distantes deles.

 

Livro no espelho de outros livros, A cidade ilhada repõe temas e circunstâncias já conhecidas, mas mesmo assim, surpreende.

 

O leitor encontra lá o riso melancólico a que se habituou e o traçado de Manaus – mais tortuoso pela força da memória do que pela topografia.

 

Encontra também definições e frases contundentes, categóricas, que revelam a sensibilidade – digamos – filosófica do texto. Aquelas frases que são idéias incomuns e que só se comunicam pela precisão da sentença escrita e reescrita, pensada e elaborada, da palavra justa.

 

Encontra, ainda, certos personagens ou parentes próximos deles. O tio Ran aparece em mais de uma história e, em outras, temos ecos dos pais, das mães e dos vizinhos dos três romances e da novela que antecederam A cidade ilhada.

 

A cidade ilhada é o primeiro livro de contos de Hatoum e a forma breve, o enlace de tramas em planos diferentes, com movimentos que fazem uma ou outra se sobrepor a cada parágrafo, é apenas a primeira surpresa do leitor.

 

A segunda é notar que, afinal de contas, os contos não são exatamente contos. Suas fronteiras são porosas e facilmente percebemos, em alguns dos textos, o tom de crônica ou a força da crítica literária.

 

E embora os ecos de Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Borges não sejam propriamente surpreendentes, eles agora parecem mais explícitos. Borges especialmente parece acompanhar cada linha do conto-título ou de “A natureza ri da cultura”. Machado, por exemplo, ilumina a pista de “Dançarinos na última noite”. E Cortázar, que ainda não havia aparecido, ressoa por trás da melhor narrativa: “Bárbara no inverno”.

 

As referências são claras sem ser exageradas, sem ultrapassar seu espaço possível, nem se impor à trama que alimentam. O diálogo subterrâneo ajuda a construir as variações de perspectiva e entonação ou as oscilações de registro narrativo, que podem buscar a linguagem do cinema ou do teatro para enfatizar uma cena ou destacar um personagem. Para mostrar sua leitura cáustica de certos estereótipos brasileiros – que um crítico desavisado ou sobreavisado pode confundir com a fala do próprio autor.

 

Diálogo subterrâneo que é, sobretudo, diálogo – independentemente do adjetivo. E é essencial num livro que fala da errância, circula entre geografias e temporalidades, vai de Bombaim a Barcelona e a Palo Alto, cruza Manaus tantas vezes e transborda fronteiras, sem nunca escapar do peso da memória da infância. Tensão, contradição? Não: nada é mais errante do que nossa memória, mesmo se a supusermos paralisada.

 

Hatoum sabe disso e lida com os labirintos da memória a cada conto de A cidade ilhada. Porque sua cidade literária se comunica o tempo todo com outras e, principalmente, com o leitor. Nunca é totalmente outra, mas sempre sonda a chance de migrar.

 

Milton Hatoum. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

 

 

Paisagens da Crítica já publicou comentário sobre outro livro de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado (17 de março de 2008)

 

 

 

 

 

 

Primeiros contos, de Miguel Sanches Neto

 

Primeiros contos  confirma a hipótese borgeana de que são os sucessores que definem os precursores, e não o contrário.

 

O livro reúne textos escritos por Miguel Sanches Neto nos anos 1990 e que ainda não haviam sido publicados. O leitor habitual de seus romances – ou mesmo de contos mais recentes – estranha a dicção entrecortada e as frases breves: uma espécie de gramática voltada à concisão, marcante inclusive nos diálogos. Estranha, também, a inclinação dos narradores para acreditar nas mudanças espontâneas, numa ocasional magia que regule o mundo e os vínculos pessoais.

 

Embora pareça tão distante da destreza técnica que os livros posteriores revelam em suas sentenças longas e nas construções refinadas, Primeiros contos é, sim, o precursor das histórias curtas de Hóspede secreto ou Herdando uma biblioteca – do ficcionista ou cronista que fala nesses livros, de sua atenção ininterrupta ao quotidiano, da sismografia das relações humanas.

 

E embora – também – seus personagens e narradores não compartilhem o olhar realista e cru, tantas vezes angustiado, de quem conta Chove sobre minha infância, Um amor anarquista ou A primeira mulher, as vozes de Primeiros contos anunciam a emergência do futuro narrador de Miguel Sanches Neto.

 

Claro que só entendemos isso se tivermos, primeiramente, lido os livros posteriores – daí a confirmação da assertiva de Borges, que observou que Kafka não foi definido por seus precursores: foi ele quem os determinou seus precursores.

 

Em alguns contos, os três romances de Sanches Neto aparecem de forma clara em Primeiros contos. É óbvia, por exemplo, a relação entre o garoto que escreve sobre a morte fictícia do pai (“A primeira morte de meu pai”) e o personagem semi-autobiográfico que relata sua infância em Peabiru, de Chove sobre minha infância.

 

Outras vezes, a conexão é menos explícita – mas não menos intensa. Quando lemos  “Atrás dos olhos da menina”, vem à lembrança, por algum caminho, a esperança quase insana de quem sonhou, e fez dormir a razão, na Colônia Cecília (Um amor anarquista) ou a origem do cinismo – no fundo, desesperado – do professor que busca a criança desaparecida de A primeira mulher.

 

Da mesma forma, os ecos de Cortázar que Primeiros contos traz são muito sutis nos livros posteriores – provavelmente substituídos pelo realismo borgeano e por sua preocupação com as ambigüidades do tempo.

 

Mas os temas de Miguel Sanches Neto e seu sentimento do mundo estão presentes, marcantes e de alguma forma decisivos, nos Primeiros Contos . Eles são iluminados pela obra posterior e nos ajudam a entendê-la. Atestam sua organicidade – não na indesejável homogeneidade, mas (bem melhor) pelos caminhos tortuosos da imaginação literária e do amadurecimento da escrita.

 

Miguel Sanches Neto. Primeiros Contos. Curitiba: Arte e Letra Editora, 2008

 

Paisagens da crítica já publicou comentários sobre outros seis livros de Miguel Sanches Neto. Um deles está neste endereço: A primeira mulher (1º de setembro de 2008). Os demais estão no endereço antigo do blog (http://paisagensdacritica.zip.net): Venho de um país obscuro (15 de agosto de 2006), Um amor anarquista (1º de setembro de 2006), Chove sobre minha infância (10 de outubro de 2006), Impurezas amorosas (23 de janeiro de 2007) e Herdando uma biblioteca (10 de outubro de 2007).

 

Janela indiscreta e outras histórias, de Cornell Woolrich

Janela indiscreta e outras histórias conta casos de obsessão. Às vezes, de um detetive; outras vezes, de um assassino. Pessoas que rodeiam o crime para cometê-lo ou para puni-lo.

 

A mais famosa das cinco narrativas do livro de Cornell Woolrich, claro, é a do título, que virou filme de Alfred Hitchcock. E não deixa de ser surpreendente ver a versão escrita da história. O clima é denso; os passos da investigação, temerários – como no filme. Nada, porém, supera a preocupante obsessão do narrador, que no cinema foi interpretado por James Stewart.

 

O crime que ele acredita ter ocorrido de fato ocorreu. Sua decifração – inclusive a improvável localização do cadáver – é correta. Mas seu jeito de voyeur, por ele próprio questionado, e sua disposição de se intrometer e de fabular (várias vezes sugerida por seus interlocutores) prevalecem à investigação. É um homem atormentado.

 

Atormentados também são os personagens das outras histórias, sempre em busca de algo que desconhecem – ou de que têm um conhecimento precário. A mulher atrás do bilhete premiado de “Post-mortem” ou seu tortuoso segundo marido. O relojoeiro-assassino de “Três horas”. Sumiço Williams, “um doutor semi-profissional do álibi”, em “Homicídio trocado”. O ansioso Paine, de “Impulso”.

 

Todos estão à beira de um ataque de nervos, e isso os leva a cometer erros graves. Erros que podem alterar o curso do crime, para o bem ou para o mal. Alguém diria: é a intromissão do acaso, aquele inevitável acaso de que Nietzsche e Mallarmé falaram, o acaso que supera a intencionalidade. É, é ele mesmo.

 

Só que há outra intercorrência em cada um dos crimes: a da precariedade da lógica que tenta construir ou desmontar as armadilhas. Ela é insuficiente, imperfeita. E mais uma: a realidade, tantas vezes elidida ou mistificada nas histórias policiais, dá o ar da graça e constrange aqueles que preferiam anestesiá-la para que tudo se desenrolasse num laboratório isolado, policial ou delinqüente.

 

 Woolrich, à sua maneira, assume os princípios do policial americano. Não os ambienta no submundo sórdido que os personagens de Dashiell Hammett ou Raymond Chandler visitavam. Nem cria investigadores que andam no fio da navalha, tão semelhantes aos investigados. Mas expõe a prolixidade do real.

 

A sordidez, segundo Woolrich, está dentro das pessoas e é filtrada – para o bem ou para o mal – pela obsessão de cada um. Por isso, seus relatos assustam tanto. Mesmo que “Janela indiscreta”, o conto, seja inferior à “Janela indiscreta”, o filme. Mesmo que você não tenha muita simpatia pela narrativa criminosa americana. Mesmo que nem goste de policiais. Não tem jeito: os personagens de Woolrich incomodam.

 

Cornell Woolrich. Janela indiscreta e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (original: 1942; tradução: Rubens Figueiredo)

O conto da ilha desconhecida, de José Saramago

O conto da ilha desconhecida, já diz o nome, é um conto em forma de livro.

 

O leitor percebe, de saída, a mão de José Saramago, a mão das preocupações sociais repetidas, a das denúncias do isolamento do poder, a da conclamação à ação dos homens. A mão que foi incisiva em Levantado do chão e no Memorial do Convento. A mão ácida e desconsolada de O Evangelho segundo Jesus Cristo e do Ensaio sobre a cegueira.

 

Também é fácil notar o fluxo de sentenças separadas por vírgulas, a combinar diálogos, entrecortar intervenções do narrador e dos personagens. A voz e a dicção migrantes de Saramago, já há algum tempo a serviço de inquietações mais filosóficas do que literárias.

 

Certo é que não se encontra, nesse conto, o vigor dos romances. O autor do vertiginoso O ano da morte de Ricardo Reis tenta adequar sua estratégia narrativa à forma breve, mas, sedento de transmitir uma mensagem, acaba por deixar as linhas de construção muito aparentes.

 

O conto, como todo conto, combina duas histórias. A primeira, explícita, de um sujeito que pede um barco ao rei para buscar uma ilha desconhecida. A segunda, do precário conhecimento de si mesmo que todos os personagens revelam. A primeira segue linear: da pressão sobre o rei à obtenção do barco e ao contato com a mulher que pode acompanhá-lo na viagem. A segunda é instável e depende de tudo que dizem ao homem para dissuadi-lo da empreitada, para convencê-lo de que, nos dias atuais, não há mais ilhas desconhecidas.Teimoso, o homem persiste e, em cima de um barco e ao lado de uma mulher, dispõe-se a navegar pelo mar ainda mais tenebroso do que o dos antepassados.

 

É tão forte, porém, a presença da narrativa subterrânea (a segunda: aquela que só deveria vir à tona no fim, e olhe lá) que a aparente (isto é, a primeira) sucumbe, presa da irrealidade do desejo do homem. Fragilidade estrutural? Não: Saramago pretende exatamente isso, que o leitor não demore a entender sua metáfora da alienação do homem em seu sonho ensandecido de repetir o passado. E que, também de súbito, enxergue a clarividência do contato com o outro, uma mulher, como o fio que lhe permite reconhecer o objetivo verdadeiro de sua procura, aquilo que o faz afrontar o rei, seus pospostos e insistir numa busca que todos supõem equívoca.

 

Ao simplificar exageradamente a estrutura do conto e expor, novamente, seu furor militante e sua disposição denunciadora, Saramago o inscreve na lógica fabular e o associa, funcionalmente, a um discurso político. Dessa forma, O conto da ilha desconhecida se torna apenas uma metáfora. Bonita ou não, apenas uma metáfora; metáfora capaz de combinar tempos e histórias para expor um presente que é simultaneamente desagradável e passível de transformação. Desde que persistamos, ensina o português, em nossas sandices e saibamos identificar como elas espelham – melhor talvez do que o mar salgado – a nós mesmos e aos outros.

 

José Saramago. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (original: 1998)