A caça ao tesouro, de Andrea Camilleri

 

A caça ao tesouro talvez traga a cena mais violenta que Andrea Camilleri já escreveu. Ela é antecipada aqui e ali por interferências do narrador, mas mesmo assim a brutalidade do crime revelado surpreende leitores e personagens do livro — inclusive, o próprio Comissário Montalbano.

 

Isso não significa, porém, que a décima-sexta aventura de Montalbano represente uma mudança de rota ou alguma variação forte do estilo de Camilleri.

 

Ao contrário, todos os elementos habituados da série estão lá: o humor, a autocrítica do protagonista, sua inquietação frente ao envelhecimento, as peculiaridades e idiossincrasias de seus colegas de comissariado, a vida que corre silenciosamente tensa em Vigàta, as eternas discussões telefônicas com a namorada lígure.

 

Também as principais referências da construção narrativa de Camilleri são claras, sobretudo a contínua inspiração de sua ficção na crônica policial algo insólita — no caso, a descoberta de duas bonecas infláveis, idênticas e parcialmente destruídas, em pontos distantes da cidade.

 

A caça ao tesouro, no entanto, leva outro ponto-chave da obra de Camilleri ao extremo: o diálogo com outras obras e outros autores. Nada acintoso, carregado ou marcado pelo exibicionismo que as citações cifradas costumam carregar.

 

É principalmente em Edgar Allan Poe que o leitor pensa conforme percorre as páginas do livro. Há pelo menos três marcas poeana com que o autor siciliano joga e, por meio delas, constrói sua história.

 

A primeira, e mais explícita, é a associação do policial a um conjunto de jogos de raciocínio, ao duelo intelectual entre assassino e detetive — que transparece na brincadeira que intitula a obra, mantém o leitor na expectativa de que seja mais grave do que parece e lentamente ganha relevância até assumir o centro da trama.

 

A segunda característica poeana ajuda a explicar a erupção da violência mencionada no início desse comentário: é de Poe que Camilleri extrai a transição segura do policial para a literatura de horror, indiferenciando o que a crítica e os leitores preferiram considerar dois gêneros, ou subgêneros, distintos.

 

Se a algum leitor escapar, no início do livro, a origem da mistura policial/horror que Montalbano enfrenta, o desfecho esclarece: é o universo intelectual do século XIX, o mesmo de onde Poe extraiu parte importante de sua imaginação literária. O XIX, suas apostas científicas e seus riscos; o XIX pressagiado por Frankenstein e sintetizado por Mr. Hyde.

 

Por esta terceira via, Poe se afirma como a sombra mais persistente sobre A caça do tesouro e ajuda a entender a nova experimentação de Camilleri. O resultado, claro, é excelente: uma história de Montalbano como não aparecia há tempos, com o personagem em pleno vigor e o autor, inquieto na juventude dos 85 anos, impressionando os leitores.

 

Andrea Camilleri. La caccia al tesoro. Palermo: Sellerio, 2010

 

Nota: La caccia al tesoro deve demorar um pouco para ser traduzido no Brasil. Se a sequência da série for respeitada, ainda há outros seis livros, anteriores a este, a serem publicados aqui.

 

 

Paisagens da Crítica comentou outros treze livros de Andrea Camilleri. Clique no nome do livro para ler:

A pensão Eva (La pensione Eva), em 24.03.2006;

O calor de agosto (La vampa d’agosto), em 12.5.2006;

As asas da esfinge (Le ali della sfinge), em 22.3.2007;

A cor do sol (Il colore del sole), em 3.5.2007;

A pista de areia (La pista di sabbia), em 1.11.2007;

Maruzza Musumeci, em 3.12.2007;

O campo do oleiro (Il campo del vasaio), em 12.6.2008;

As ovelhas e o pastor (Le pecore e il pastore), 19.06.2008;

O tailleur cinza (Il tailleur grigio), em 24.06.2008;

O guarda-cancela (Il casellante), em 3.11.2008;

A idade da dúvida (L’età del dubbio), em 22.4.2009;

O guizo (Il sonaglio), em 2.5.2009;

Um sábado com os amigos (Un sabato, con gli amici), em 8.8.2009.


 

 

9 pensamentos sobre “A caça ao tesouro, de Andrea Camilleri

    • Recomendo o Cheiro da Noite, (a comida apimentada e em seguida a arvore que ele costumava descansar cortada e sua atitude mediante a isso me fez rir muito). Esse foi o melhor q li

  1. A vontade de Camilleri é tão grande e a lerdeza das traduções tão intensa que rola de aprender italiano só para estar com Montalbano hahahahaha (ahhh.. se não fosse o mestrado a me impedir).

    • Elisangela,
      tudo bem?
      Desculpe-me a demora na liberação do comentário e na resposta a ele. Estava unplugged por causa de compromissos acadêmicos.
      Italiano mesmo não é difícil de se habituar a ler; já a língua híbrida que Camilleri utiliza em seus livros custa um pouquinho mais de trabalho. Mas vale a pena. Nem que seja para relaxar em meio aos estudos do mestrado.
      Abraços,
      Júlio

    • É o que estou fazendo, estudando Italiano pra continuar a ter muito prazer em minhas noites com Montalbano, livia, catarella e toda a turma. Muito muito muito bom.

      • Jano,
        tudo bem?
        Curiosamente, L’odore della notte foi das histórias de que menos gostei. Mas mesmo assim é muito divertida.
        Abraços,
        Júlio

  2. estou a estudar italiano e vou apresentar L’odore della notte de Camilleri. Gostava de saber se há algum site ou bibliografia sobre este autor para poder estudar melhor Obrigada. Vitorina

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