Pastoral americana, de Philip Roth



Pastoral americana, de Philip Roth, é livro a ser relido sempre. Se você, leitor, por acaso ainda não leu pela primeira vez, supere logo essa fase e passe à segunda, terceira, quarta leituras… Não parará mais.

Lembre-se, porém, que nem toda leitura conforta. Na verdade, a maioria dos bons livros inquieta, desconsola, desorienta, desconcerta — este, ao menos em parte, é o papel da arte.

Um querido amigo tinha o hábito de reler O som e a fúria, de Faulkner, duas vezes por ano. Cada releitura era seguida de um mês de depressão. A mulher, sábia e cansada diante das crises, determinou: O som e a fúria, no máximo uma vez por ano. Ele compreendeu: nem só o leitor arca com os custos do desassossego que a boa literatura produz.

A cada releitura de Pastoral americana, passo maus bocados, felizmente breves. E também me convenço da centralidade de Philip Roth na literatura atual. Alguém que sustenta a densidade e a precisão do texto por quase 500 páginas merece, no mínimo, reverência. E estudos, análises cuidadosas, reinterpretações.

Desde seu lançamento, em 1997, o livro é tratado como uma potente crítica ao sonho americano — crítica que a ironia do título já sugere, ao mostrar o ininterrupto mascaramento da realidade na vida idílica do americano comum. Como ocorre sempre em Roth, o indivíduo compacta as tensões do coletivo e age sob a pressão da história. Verdade, o livro é isso mesmo, embora não apenas isso.

O impressionante sucesso do Sueco, personagem central da trama, não ultrapassa a superfície ou o olhar distante. Na profundeza de sua perfeição, tudo está corroído e ele demora a perceber.

Roth desenha passo a passo a angústia da realidade e o desmanche de uma personalidade aparentemente simples e exemplar demais, correta e óbvia demais. Faz a diagnose dos conflitos internos, da complexidade do humano e de suas relações, da incomunicabilidade.

Vivemos entre homens — a divisa é de Nietzsche — como entre pedaços e fragmentos de homens: esta, a constatação do narrador de Roth. Não há homem uno, integral: ‘O Sueco, cuja nobreza natural consistia em ser exatamente aquilo que parecia ser, havia padecido sofrimentos demais para voltar a ser ingenuamente indiviso outra vez’, constata, tão surpreso quanto os leitores diante da incrível derrocada do americano perfeito.

Um só gesto, cifrado borgeanamente num instante, acendeu sua consciência. O gesto foi da filha e a consciência era indesejável, mas ocupou todos os espaços e passou a resumir sua vida, uma ‘encenação sobre ruínas’.

Ler Pastoral americana hoje é curioso. Não há mais a Guerra do Vietnã e a intensidade política da década de 60. Não estamos nos Estados Unidos e nem aqueles Estados Unidos existem. Mas o que há de humano, irreversivelmente humano na narrativa de Roth é quase atemporal: ultrapassa os sonhos que os séculos XIX e XX acalentaram — e dos quais despertaram atordoados —, rompe qualquer barreira geográfica.

Porque o espetáculo da ruína e da angústia, que Roth discerne tão bem, mesmo em meio à paradisíaca pirotecnia do sucesso, prossegue. E é ubíquo.


Philip Roth. Pastoral americana. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (original: 1997; tradução: Rubens Figueiredo)


32 pensamentos sobre “Pastoral americana, de Philip Roth

  1. sou dessas q não li esse do philip roth, anotado. um livro q me deixou muito mal, não sei se tenho coragem de reler é o ensaio sobre a cegueira do saramago. beijos, pedrita

    • Pedrita,
      tudo bem?
      Leia, sim.
      Já gostei mais do Ensaio sobre a cegueira do que gosto hoje. Mas é sem dúvida um livro que causa bastante impacto na primeira leitura.
      Beijos,
      Júlio

    • Lucas,
      tudo bem?
      Li.
      É difícil escolher o preferido. Gosto diferentemente de muitos, quase todos. Pastoral americana certamente está entre os primeiros.
      Abraços,
      Júlio

  2. Oi Júlio,

    Esse não tenho… vai para a lista de compras.

    Estou lendo Anna kariênina, e adorando.

    Que bom que voltou ao blog.

    bjs

    Val

    • Val,
      tudo bem?
      Vale muito, muito. Mesmo que a leitura deixe resíduos amargos.
      Li Anna Karenina na adolescência, não lembro quase nada. Precisaria voltar.
      Beijos,
      Júlio

  3. Acabei de ler o Everyman (da Vintage, “Homem Comum”, pela Cia das letras) e disse pra mim mesma, na semana passada, que ia demorar até ler outro do Roth.

    Impossível manter essa promessa depois de ter lido o teu texto! Vou amanhã mesmo na biblioteca ver se encontro o Pastoral Americana.

    Abraços!

    • Amanda,
      tudo bem?
      Leia, sim.
      Mas fiquei curioso quanto à decisão de demorar para voltar a Roth: não gostou ou se afligiu com Homem comum?
      Abraços,
      Júlio

  4. Boa noite, Julio!

    O curto intervalo que separa cada uma das obras dessa trilogia do Roth é algo que merece ser destacado. Curiosa também a questão dos “maus bocados”. Há um outro romance dele que me deixa doente: Lição de Anatomia. E eu releio uma vez por ano, vá entender.

    Abraço

  5. Eu estou acostumado a ler livros que nos deixam mal pela realidade da escrita e pelo embasamento, que se prova como realidade. Um exemplo é O Segundo Sexo, que não é romance, drama e etc, é um livro tido como sociologia/filosofia que me marcou muito.

    • Vinicius,
      tudo bem?
      Faz muitos anos, quase trinta, desde que li O Segundo Sexo. De lá para cá, não reli.
      Embora ele certamente não tivesse, na época – como hoje -, o impacto e o significado político do momento de sua publicação original, continuava forte e impressionava.
      Preciso reler… Obrigado pela dica.
      Abraços,
      Júlio

  6. Olá Júlio,

    Só li um livro de Roth, Indignação, que conheci graças ao seu blog, e ele me pertuba até hoje…..mas é importante manter certos dessassossegos…..Agora fiquei instigada para ler Pastoral americana…
    Abraços da ex-aluna

    • Fabíola,
      tudo bem?
      Ricardo Piglia disse numa entrevista recente que a literatura existe ‘para criar problemas’.
      Parece que Roth está funcionando bem, então… rs
      Beijos,
      Júlio

  7. Estou lendo esse livro para uma disciplina optativa do mestrado. Não estava muito empolgado, no começo, até mesmo pelo caráter obrigatório da leitura. Mas posso dizer que logo nas primeiras páginas esqueci que estava cumprindo uma obrigação, e estou gostando muito. É o primeiro livro do Philiph Roth que estou lendo, e creio que não será o último.

  8. Julio, seu blog continua imperdível. Li Indignaçao (meu primeiro Roth) e me perturbou de tal maneira que precisei buscar outros. Marca Humana foi meu segundo. Parece que estou em retrospecto. Vou ao Pastoral Americana.
    De Faulkner, Luz em agosto me perturbou muito! Depois de ler pensei: para que escrever? Esse texto é a perfeiçao. Abraço, Eymard.

    • Eymard,
      tudo bem?
      Obrigado.
      É de fato incrível como alguns livros nos atordoam de tão bons.
      Mas sigamos em frente, lendo e escrevendo.
      Abraços,
      Júlio

  9. Caro Professor,

    Descobri seu blog justamente por causa de Philip Roth. Estava à cata de alguns de seus livros _ dentre os 31 (eu acho) títulos já publicados por Roth _ por onde começar minha jornada. Li, há algum tempo, Entre Nós, mas este não conta tanto. Embora magnífico, são entrevistas, e eu queria mergulhar no universo dos romances. Sua crítica de Pastoral Americana me impressionou profundamente e me fez elegê-lo o primeiro a ser lido, dos quatro que comprei de início (além de Indignação, Homem Comum e A Marca Humana).
    Estou, no entanto, pouco à vontade com a tradução. É que Rubens Figueiredo é um respeitado tradutor, mas é conhecido principalmente pelas traduções que faz diretamente do Russo.
    Antes mesmo de ter me lembrado de onde conhecia seu nome, senti um certo desconforto na construção das frases, uma não-familiaridade com o universo retratado. Não sou tradutora; leio bem em Inglês e o faço diariamente, mas é sempre um segundo idioma. Isto posto, fica muito mais fácil ler uma boa tradução, embora pérolas sejam sempre perdidas.
    Gostaria de saber sua opinião; talvez eu esteja apenas vendo fantasmas.
    Não sou nenhuma erudita, sou uma leitora comum, mas minha obsessão por boas traduções pode me levar a erros de avaliação.

    Adorei conhecer seu blog e será um grande prazer viajar pelos posts escritos desde 2008.

    Abraços,

    Eliana

    • Eliana,
      tudo bem?
      Obrigado por seu comentário.
      Prefiro Paulo Henriques Britto como tradutor de Roth, mas não me incomodou a tradução de ‘Pastoral americana’ por Rubens Figueiredo. Na verdade, em se tratando de autor como Roth, e se tem bom domínio do inglês, sugiro que leia no original. Além de não precisar esperar a publicação da edição brasileira, percebe-se com mais profundidade o trabalho de texto. De qualquer forma, acho que as traduções brasileiras de seus romances têm bom nível.
      Volte sempre ao blog e comente sempre que puder.
      Abraços,
      Júlio

  10. Olá Júlio!
    Conheci o seu blog porque estava procurando comentários e críticas sobre o livro “Pastoral Americana” . Bem, este é o primeiro livro que eu leio deste autor e confesso que estou estupefata , comecei a relê-lo ontem e confesso que algumas passagens ficaram obscuras para mim. Gostaria de participar de uma discussão sobre este livro. O que você sugere?

    • Rubinalva,
      tudo bem?
      Não conheço espaços de discussão dedicados à obra de Roth.
      Sugiro que leia ensaios de/sobre Roth, que certamente vão ajudar a compreender a perspectiva literária dele. Por exemplo, os textos de ‘Entre nós’, publicado aqui no Brasil. O livro ‘Roth Unbound’, de Claudia Roth Pierpont, que acabou de sair, é bem interessante e abre muitos caminhos de interpretação sobre a obra de Roth.
      Abraços,
      Júlio

      • Obrigada pela resposta e espero que continuemos a trocar informações. Sou professora, moro em Guarulhos e estou afastada da sala de aula há anos. Amo ler e às vezes sinto falta de discussões a respeito de literatura. Aqui no Brasil, mesmo entre professores fica difìcil encontrar pessoas que se interessem por bons autores.. Fica aqui uma dica de leitura: “O cemitério de Praga”..

        Um grande abraço.

        Rubi

      • Rubi,
        tudo bem?
        Comente sempre que quiser e puder.
        O espaço para a discussão literária, fora dos círculos de amigos e dos guetos de (suposta) intelectualidade, é muito pequeno, infelizmente.
        Obrigado pela dica. Também gostei muito de ‘O cemitério de Praga’.
        Abraços,
        Júlio

  11. Prof. Júlio, como está?

    Da leitura do livro – ao qual cheguei por sua indicação, como os do Tabucchi – senti que o que choca, além da decadência do american way of life, personificada no Sueco, é o jogo de espelhos no qual nos emaranhamos. Em determinado momento, em que ele conversa com a filha, o narrador diz que ele deveria usar o bom senso para deixar o bom senso de lado e agir, mesmo contra a expectativa de todo mundo, o que para ele – e para nós todos – por vezes é insuportável.
    Aproveito a oportunidade para perguntar: o livro Desonra, de J.M. Coetzee, é considerado uma obra-prima. Depois de uma leitura recente, em que não senti o impacto que, por exemplo, Pastoral Americana proporciona, me ocorreu de lhe pedir que explique os fundamentos dessa consideração: é o estilo, a linguagem, o desencanto chocante da vida exposto na trama, enfim, o que faz daquele um livro especial, na sua opinião? Abraço, Glauder

    • Glauder,
      tudo bem?
      Concordo com sua leitura de Pastoral.
      Quanto a Desonra, acho que a excelência do livro esteja na combinação desses elementos que você levanta. Associada a eles, uma racionalidade brutal (em todos os sentidos: pela brutalidade/violência que anuncia e pela brutalidade/falta de lapidação do olhar) que esquadrinha um momento decisivo da historia recente.
      Abraços,
      Júlio

  12. Pensando no conceito de “jogo”, com o qual Iser define a relação com o texto, e na importância que o foco narrativo assume para que as regras do jogo se definam, o livro me causou um desconforto. É uma narrativa para ser lida sempre com a descrença como método. Afinal, o narrador é um personagem, que mantinha com o protagonista uma relação de contador (quase contratado) de sua história. Por ser personagem, estaria em uma condição próxima daquela do narrador-testemunha, mas ele não viu os fatos principais da vida do seu protagonista acontecerem. Narra os processos internos dele, os detalhes daquilo que um outro viu, de um modo que o jogo narrativo aceitaria sem reservas se o narrador estivesse fora da narrativa e se encarregasse apenas da narração. Assim, o realismo das cenas, como a do encontro com a filha depois de anos, e a descrição do atordoamento do protagonista assumem a condição de criação de um narrador que se apresentou como alguém que não conviveu com seu protagonista ao ponto de saber sua intimidade. É como se, desde o início da segunda parte do livro, o jogo precisasse da descrença nesse realismo. Como em “Indignação” se crê em um narrador que já morreu, aqui não se pode crer no personagem que narra. Roth cria regras estranhas para o jogo. O peso desse realismo, sobretudo na segunda parte, faz esquecer que o que ali está sendo narrado é a visão de um escritor-narrador a respeito do seu mito.

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