O sonho do celta, de Mario Vargas Llosa

O sonho do celta deixa o leitor encafifado: por que, afinal de contas, o romance histórico é hoje tão malvisto?

 

Quase todas as resenhas do novo livro de Mario Vargas Llosa bateram na mesma tecla. Algumas o elogiaram, outras o espinafraram, outras ainda foram cuidadosamente distantes. Nenhuma, porém, esqueceu de lembrar que a fórmula a que ele recorre vem do XIX e talvez não caiba mais nos dias atuais. Será mesmo? Por quê?

 

Claro que a discussão é longa, já contou com a participação de críticos de grandes e pequenos calibres, esteve em obras inesquecíveis e obras esquecidas. Ela inclui debates sobre o próprio conceito de romance, ocasionais vínculos políticos e sociais de tramas e autores e, claro, sobre a importância das transformações e dos experimentos por que o gênero passou no século XX.

 

Mas peço licença ao leitor e, pretensioso, levanto aqui uma lebre. Lebre pequena, mas sempre lebre. Não é curioso que se insista tanto na morte e sepultamento, no anacronismo do romance histórico? Se já se vão uns dois séculos desde seu surgimento e mais de um desde o suposto esgotamento, por que é preciso repetir a oração fúnebre?

 

E já que uma lebre nunca vem só, levanto logo outra. De que romance histórico estamos falando e por que não tem lugar num tempo — o nosso — que, mais do que nunca, deveria se preocupar com a historicidade dos homens e de suas circunstâncias?

 

Vargas Llosa, sabe-se, tem algumas obsessões literárias. A pesquisa exaustiva é uma delas. Para escrever O sonho do celta, ele revirou não sei quantos arquivos, entrevistou gente em meio planeta, leu longa bibliografia. O objetivo era reconstruir a trajetória de um personagem incrível: o irlandês Roger Casement.

 

Casement viveu num mundo de sonhos ambiciosos e de farta ambição material. Um mundo que encantava e, com igual facilidade, desprezava seus herois. O século XIX da colonização europeia da África, do avanço expansionista, dos nacionalismos à flor da terra.

 

Casement denunciou a barbárie no Congo Belga e, assim, deu o impulso inicial para que Joseph Conrad escrevesse o mais impressionante — o adjetivo é de Borges, mas quem discordaria? — relato de todos os tempos: O coração das trevas.

 

Casement denunciou a exploração dos indígenas na extração da borracha na Amazônia peruana, mostrando ao mundo que a crueldade não era unívoca, nem localizada: estava dos dois lados do Atlântico, corria de norte a sul.

 

Casement afastou-se da diplomacia britânica — a mesma que o levara à África e à América — e mergulhou na epopeia nacionalista e católica, participando de movimentos legais e clandestinos pela independência irlandesa.

 

Casement foi julgado como traidor e sentenciado à morte pelo Império que, durante décadas, representara.

 

Casement, preso, homossexual, foi alvo de campanhas difamatórias, que o acusaram de todo um repertório de atos obscenos e conduta pornográfica.

 

Casement, Casement, Casement: retrato de um século, com suas conquistas tecnológicas e guerras brutais. Isolado na cela, ele relembra, em capítulos que se alternam com o relato da vida toda, partes do mundo que viveu. Traz o mundo na cabeça e sua cabeça, diria Canetti, continua a percorrer o mundo que, aparentemente, quer se livrar dele.

 

Claro que Vargas Llosa mantém o leitor, até a última linha, na dúvida sobre o quanto há de verdade e o que há de mentira na história narrada. Esta, de resto, é outra de suas obsessões: mostrar o terreno pantanoso por onde caminha a literatura e seu gesto criador de verdades por meio de um roteiro repleto de mentiras. Com quantas mentiras construímos — pergunta(-se) o peruano — as principais verdades? Por que a invenção de uma verdade pessoal ou coletiva depende da criação e do cultivo cuidadoso dos mitos?

 

Certo: o compromisso da ficção é com a imaginação, mas, quando a imaginação penetra surdamente no reino da história, que resíduo nos resta?

 

‘Heroi e mártir’, pensa Casement numa dada altura do romance, ‘não é um protótipo abstrato’. Tampouco ficção e história, associadas, resultam em abstrações. Se pretendemos, de fato, pensar o tempo que vivemos e o passado que nos espreita, não é a ficção um caminho poderoso de reconstrução do vivido?

 

Talvez o enorme volume de informações que o romance traz obscureça um pouco seus temas centrais, construa um protocolo de verossimilhança exagerado e leve tanta gente a lê-lo como “mais um romance histórico”, como uma tentativa de despertar um gênero — ou subgênero, se preferirem — moribundo.

 

No entanto, o propósito pode ser justamente o oposto: mostrar que é preciso perceber que esse atestado de óbito, emitidos por tantos críticos, pode ter sido precipitado e equívoco. Que a história continua vivendo na fronteira porosa e instável da ficção e é ininterruptamente recriada por ela. Que Vargas Llosa abandonou o experimentalismo narrativo dos anos 1960-70, mas ainda é um grande e surpreendente romancista. Que (repito), mais do que nunca, é perigoso rejeitar o reconhecimento crítico do passado.

 

Mario Vargas Llosa. El sueño del celta. Buenos Aires: Alfaguara, 2010.

 

 

Paisagens da Crítica comentou outros dois livros de Mario Vargas Llosa:

Cartas a um jovem escritor (em 18 de agosto de 2006) e

Travessuras da menina má (em 12 de setembro de 2006).

 

Clique no título dos livros se quiser ler os comentários.

 

 

 

9 pensamentos sobre “O sonho do celta, de Mario Vargas Llosa

  1. eu confesso q eu acho às vezes meio pretensioso algumas pessoas falaram com tanta propriedade mal de alguém tão talentoso. vc elucida bem e vc não é pretensioso. acho muito arriscado alguém acabar, e mais arriscado escrever fazendo comparações e sempre depreciativas. gostei muito da sua elucidação. eu estava realmente com essa dúvida depois q vi textos acabando com a obra. beijos, pedrita

  2. Olá, Júlio
    Esse tema é realmente muito interessante. Até pq, independentemente da crítica aos romances históricos, esse gênero continua vendendo. Acho que o problema é a relação historicista de muito desses romances, que se apóiam mais nas visões tradicionais da história, em geral com um personagem de facetas inesperadas que termina por servir como um único fio condutor. Em uma compreensão contemporânea da história, sabemos que essa premissa é falsa. No entanto, as pessoas estão cada vez mais fascinadas por biografias e relatos históricos, isso é fato.

    beijos,
    Júlio

    • Giovanna,
      tudo bem?
      Concordo plenamente: a diferença está na concepção de história e no tipo de romance histórico que se faça.
      E talvez estejamos vivendo um surto tardio de interesse por história e biografias, tipos de narrativa que nunca foram muito praticados por aqui. Por ser um fenômeno recente, ainda é preciso amadurecer um pouco a produção desses textos, fazendo-os melhorar na concepção, nos conceitos que operam, na qualidade da pesquisa, na escrita. Hoje são raros os livros de história para divulgação e as biografias de boa qualidade. Mas tendo ao otimismo; creio que a melhora não tardará.
      Beijos,
      Júlio

      Dennis,
      tudo bem?
      Nunca li Cornwell, mas concordo plenamente quanto a Tomás Eloy Martínez, um autor subvalorizado (ainda).
      Como escrevi acima, à Giovanna, creio que a questão esteja na maneira como se concebe e narra a história. E essa modernização do romance histórico (aqui no Brasil, o único nome que me ocorre é o de Miguel Sanches Neto), se difundida, pode dar outro sentido para o subgênero e receber outra abordagem crítica.
      Abraços,
      Júlio

  3. Oi Júlio,

    Quando ouço ou leio sobre romance histórico, não consigo me esquecer de dois autores… Bernard Cornwell, autor de best-sellers sobre várias passagens da historiografia inglesa, que fez alguns dos meus alunos passarem a gostar mais de História. E Tomás Eloy Martínez, que conheci no seu curso e devorei tudo o que achei dali em diante. Sem dúvida foi por causa de Santa Evita que depois descobri Veríssimo. Uma pena tantas declarações da morte deste gênero, que pode sim ser um dos mais instigantes…

    Abraços,

    Dennis.

  4. Oi Júlio,

    Realmente é uma pena a subvalorização de Martínez. Mas na sua opnião, qual seria a razão desta valorização das biografias e dos relatos como “1808”, que ganhou até uma continuação, pelo público?

    Abraço,

    Dennis.

    • Dennis,
      Eloy Martínez sempre foi mais valorizado como jornalista do que como ficcionista. Uma pena.
      Creio que já havia essa vontade de ler sobre história e vidas alheias. Um público leitor longamente esquecido, que agora foi notado e passou a encontrar o que ler. A academia, porém, continua voltada apenas para seus próprios meandros; outros aproveitam, então, o espaço aberto, nem sempre com trabalhos de qualidade.
      Abraços,
      Júlio

  5. Ganhei o livro mas ainda não comecei a ler. Confesso que fiquei um pouco apreensiva de ler esse post, com medo de encontrar algum spoiler. Mas você só fez aumentar minha vontade de iniciar logo a leitura. Pena que a faculdade atrapalha meus estudos! (risos).
    Achei interessante a discussão aqui nos comentários sobre a retomada de romances históricos e biografias, dois gêneros que os historiadores ainda encaram com desconfiança. Mas como mostrou Dosse no “desafio biográfico”, as pessoas se interessam por história, e se os historiadores não querem escrever para um “grande público”, os jornalistas “abocanham” esse filão de mercado, ainda que muitas vezes não realizando uma pesquisa profunda ou mesmo com a pretensão de escrever uma “história total”. Mas chega de divagações. Adorei o blog e vou começar a seguir.
    Abraços!

Deixe um comentário