Gato preto em campo de neve, de Erico Veríssimo, por Dennis de Almeida

 

Gato preto em campo de neve, de Erico Veríssimo

 

por Dennis de Almeida

 

Gato preto em campo de neve poderia ser apenas um balanço sobre uma viagem, com os seus principais pontos turísticos e alguns encontros com personalidades com ar de intimidade. Seria muito atraente se fosse apenas isto. Mas ele vai além, e o resultado é um dos melhores livros de viagem já escritos no Brasil.

 

Erico Veríssimo o escreveu após uma excursão aos Estados Unidos, nos primeiros meses de 1941. Esta viagem fazia parte da conhecida política de boa vizinhança do Departamento de Estado sob a presidência de Franklin D. Roosevelt.  Mas o que ele descobriu sobre o “grande irmão do norte” e sobre o próprio país? Sob que olhar ele fez esta viagem?

 

O autor de O tempo e o vento sempre se definiu como um contador de histórias. E o que ele nos oferece no Gato Preto é, em todos os sentidos, um romance. Os personagens desta jornada são as pessoas que encontrou, as cidades em que esteve e, duplamente, ele próprio já que, por diversas vezes, tecia diálogos com um fantasma particular auto-denominado Malasartes.

  

O país encontrado por Erico, ao desembarcar em Nova York , era um país jovem, entusiasmado e, muitas vezes, pendendo do otimismo para a inocência. Pessoas sorridentes, que demonstram sua prosperidade sem ostentá-la, pontuam todo o relato. De escritores, como W. Somerset Maugham, ao engraxate da Quinta Avenida, todos revelam a cordialidade de quem é confiante no futuro do país, mesmo que estivessem preocupados quanto ao resto do mundo; afinal, eram tempos de guerra.

 

Por meio da admiração frente ao respeito às liberdades individuais, também transparece a crítica ao Estado Novo. Ali o romancista cede lugar ao cidadão, que questiona, através do exemplo norte-americano, muitas das alternativas escolhidas pelo governo brasileiro e, por que não?, pelo povo de seu país.

 

Mesmo nestas passagens, no entanto, não existe traço de rancor para com ambas as realidades. Erico não possui aquela antipatia contra a posição dos Estados Unidos frente ao mundo, tão em moda até hoje.  Seu olhar busca muito mais a substância do que o contorno enrijecido. Quer, em primeiro lugar, compreender, para então poder refletir.

 

O lado obscuro também é desnudado nos guetos de Nova York ou nos bairros negros de Washington.  A pobreza, o preconceito e a intolerância fazem parte das cores desta tela. Mesmo assim, não é um discurso ideologizado, no qual a pobreza é mero artifício do discurso político.  Antes de tudo, a pobreza é tratada como condição à qual nenhuma pessoa deveria ser entregue.

 

Estamos acostumados a ver o pior lado dos Estados Unidos. Durante os últimos oito anos, uma política unilateral ditou os rumos da nação. Entretanto, com as eleições recentes, o melhor dos norte-americanos veio à tona: a necessidade de ser voluntário; a vontade de fazer valer a sua opinião dentro das regras não apenas da democracia, mas também do respeito mútuo. Esta é a América que Erico Veríssimo nos mostra.

 

Em tempos tão brutos quantos os nossos, vale a pena ler Gato preto em campo de neve, pois este é um exercício de tolerância e de ponderação responsável acerca do mundo em que se vive. Não é a toa que a ultima palavra do livro é esperança.

 

Erico Verissimo. Gato preto em campo de neve. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (original: 1941)

 

Dennis de Almeida é historiador e estudioso da obra de Erico Veríssimo.