O campo do oleiro, de Andrea Camilleri

O campo do oleiro – Il campo del vasaio – não é a melhor, mas talvez seja a mais tocante história do Comissário Salvo Montalbano, detetive criado pelo siciliano Andrea Camilleri.

Montalbano chega cada vez mais cansado a seu décimo-terceiro romance – fora os trinta e seis contos e as três novelas. O tempo passa e pesa para ele: tem agora 58 anos e os rumos da política e da polícia o desiludem. Vê o mundo sombrio e acredita pouco na justiça. Se não bastasse, atravessa uma história de traições, indicadas já no título do livro: o campo do oleiro, conta o Evangelho de Mateus, é onde foram gastas as trinta moedas do Judas arrependido. E num campo assim encontram um cadáver despedaçado em trinta partes, levantado da lama pelas chuvas.

Camilleri domina como poucos, na atualidade, os mecanismos do policial: conhece as matrizes clássicas do gênero, deprecia sutilmente a vertente americana e inventa novos caminhos para a escrita de mistério. Em parte, o policial moderno de Camilleri é herdeiro de Leonardo Sciascia, outro siciliano, escritor do que Italo Calvino chamou de “gialli non gialli” – policiais não policiais. Tal qual em Sciascia, a verdade para Camilleri não é absoluta ou decisiva e nem sempre vem e fica à tona. Algumas de suas versões, sim. É em busca delas – verdades relativas, consensuais – que seus detetives vão, cruzando um mundo insalubre, recheado de velhos e novos mafiosos, de políticos inescrupulosos. Também à semelhança de Sciascia, é o silêncio da Sicília, seus não-ditos e os olhares eloqüentes que, juntamente com a forte entonação oralizada da língua, dão especificidade e dinâmica para a trama e seu desvendamento.

Se o campo do oleiro simboliza uma traição, a original, muitos são os traidores, e de diversos tipos, que circulam ao redor dessa narrativa sombria, que combina assassinatos em mais de um tempo, vinganças e falsos testemunhos. Há traição conjugal, traição à famiglia mafiosa, traição a si mesmo e a que parece pior aos olhos de Montalbano: a da confiança entre amigos. É Mimì Augello quem está na baila e cuja amizade longa parece em risco. Mimì é o vice-comissário de Montalbano e, após ter ganho destaque em várias histórias, andou meio sumido nos três últimos romances. Agora volta à baila e obriga Montalbano a investigar secretamente o homicídio do campo do oleiro e seus desdobramentos do passado e no futuro.

O método de Montalbano nunca foi sherloquiano, linearmente lógico. Ao contrário: Camilleri já o descreveu como semelhante aos ramos cruzados de uma oliveira, intrincado, confuso, caótico, às vezes intuitivo, sempre crivado de variações e, na sua teatralização, de conversas consigo mesmo. A diferença agora é que Montalbano se põe a escrever e é no texto – em longas cartas a si mesmo – que estrutura sua pesquisa e percebe as razões que ligam e justificam as pistas. Nenhum escritor, porém, pode existir se antes não houver um leitor; e Montalbano, para redigir sua versão, antes lê, e lê um Camilleri: La scomparsa di Patò, que já é, por si mesmo, um diálogo com livros anteriores e o desenvolvimento da trajetória de um personagem ficcional de Sciascia. Do universo da leitura e pelo fio da escrita, a decifração.

O sentido é obviamente metaliterário, mas sem qualquer peso para o leitor comum, que pode escolher o nível de leitura que prefere, do entretenimento rápido ao reconhecimento das muitas instâncias narrativas que Camilleri conjuga para dar mais complexidade a seu personagem famoso e variar suas histórias. Também cabe ao leitor entender e avaliar a forma peculiar como Montalbano desenreda a teia de traições e repõe as relações em seus devidos lugares. Emocionalmente. Sobretudo silenciosamente, que é como os sicilianos tratam as coisas importantes.

Andrea Camilleri. Il campo del vasaio. Palermo: Sellerio, 2008

Os treze romances protagonizados por Salvo Montalbano são: A forma da água (1994 – no Brasil, 1999), O cão de terracota (1996 – no Brasil, 2000), Ladrão de merendas (1996 – no Brasil, 2000), A voz do violino (1998 – no Brasil, 2001), Excursão a Tindari, (2000 – no Brasil, 2002), O cheiro da noite (2001 – no Brasil, 2003), Il giro di boa (2003 – no Brasil, Guinada na vida, 2005), La pazienza del ragno (2004), La luna di carta (2005 – no Brasil, A lua de papel, 2007), La vampa d’agosto (2006), Le ali della sfinge (2006) e La pista di sabbia (2007). Além desses, há quatro volumes de narrativas curtas: Um mês com Montalbano (1998 – no Brasil, 2002), Gli arancini di Montalbano (1999), La paura di Montalbano (2002), La prima indagine di Montalbano (2004 – no Brasil, 2008).

Provavelmente a tradução brasileira deste livro demore. Das treze aventuras de Montalbano, como se pode ver acima, já foram traduzidos as sete primeiras e a nona, pulando – sabe lá Deus por quê – a oitava (A paciência da aranha). Além deste, ainda faltam traduções de O calor de agosto, As asas da esfinge e A pista de areia para que se chegue a O campo do oleiro.

Paisagens da Crítica já publicou (no endereço antigo: www.paisagensdacritica.zip.net) comentários sobre outros seis livros de Andrea Camilleri: La pensione Eva (24 de março de 2006), La vampa d’agosto (12 de maio de 2006), Le ali della sfinge (22 de março de 2007), Il colore del sole (3 de maio de 2007), La pista di sabbia (1 de novembro de 2007) e Maruzza Musumecci (3 de dezembro de 2007). Nas próximas semanas, publicarei comentários sobre mais dois livros de Camilleri: Le pecore e il pastore (2007) e Il tailleur grigio (2008).