6 pensamentos sobre “podcast: Mercedes Sosa

  1. Caríssimo Júlio,

    Depois de ouvir muito mais que uma vez este podcast, muitas dúvidas me inquietam (no melhor sentido da inquietação, qual seja, o de procurar criticamente as dobras do texto para que elas se possam desdobrar em explicações).
    Em primeiro lugar, qual seria exatamente o anacronismo em esforços, não apenas latino-americanos, mas em todo o mundo cujas forças sócio-econômicas estejam aquém de seus potenciais? Onde estaria o inadequado dos esforços quanto a escapar às hegemonias das políticas externas (implantação de bases militares sob o discurso de combate ao narcotráfico e à guerrilha, por exemplo) ou aos mercados comuns impostos desde os cérebros das grandes corporações transnacionais cujos interesses estejam em apropriar-se privadamente de solos (bacia hidrográfica do Amazonas, por exemplo), mares (o sul do Pacífico e do Atlântico) e subsolos (jazidas minerais ou aqüíferos)? O que exatamente é anacrônico em projetos quanto a erradicar analfabetismo, desemprego e estruturas fundiárias, ou urbanas ou rurais, que remetam a heranças dos tempos de cabildos ou vice-reinados? Anacrônicas seriam as estratégias (populistas, ou demagógicas) quanto a manter a exportação de primários (visando, por exemplo, à aquisição de petrodólares) sem contudo um projeto consistente quanto ao desenvolvimento pleno das forças tecnológicas, e apenas assentadas em assistencialismo e num não-alinhamento belicista? Ou então o anacronismo estará, desde antes, em questionamentos quanto à hegemonia duma Divisão Internacional do Trabalho que as teorias do desenvolvimento procuraram refutar? Problemáticas (e ingênuas) seriam as teses no sentido de pressupor que a dependência dos antigos territórios coloniais possa se romper? – ou apenas as estratégias para que a dependência seja rompida (maoísmo, castrismo, sandinismo, chavismo, evomoralismo etc.)?
    Destas inquietações resultam outras. Se “liberdade” (o que é “liberdade”, conceito que não há quem não entenda, muito embora pareça não haver quem, mesmo sartreanamente, a defina?) nunca esteve em Cuba Libre, estará então em poderes tripartites com funções constitucionalmente definidas, e em cargos preenchidos por voto universal e concurso – sempre mediados pela “media” empresarial e de massas? Estaria, porventura, nas leis naturais que a mão invisível do mercado semeia, e que promovam a colheita de preços que não sofram a intervenção de mínimos salariais e máximos nos gêneros de primeira necessidade? Estará, como quer Vargas Llosa, na livre iniciativa latin-oamericana quanto a fundar empresas de refrigerantes? Abdicamos, hoje, de propor novos significados ao que seja Libertad? – ou está defnitivamente comprovado que nem Mercedes Sosa nem Vargas Llosa detêm a resposta? Em que crescemos diante de tal impasse? – em recusar a igualdade que se arrogue o dever de sacrificar certos pensamentos em paredóns? – ou em estabelecer que apenas da liberdade liberal (com seus Estados de Direito e com sua idéia de propriedade cartorial, sem mecanismos outros quanto à distribuição de renda) pode o universalmente humano resultar? Ou então será que o pressuposto de tais perguntas, em sua vocação de totalidade nas humanas experiências, deva ser abandonado em função duma historicidade toda ela feita de individualismo (um individualismo entretanto esmigalhante) e de ethos (e que a práxis fique para depois)? Tudo (materialidade inclusive, e crença na capacidade humana de planejar e assim confiar em que se possa construir o futuro dos humanos territórios) ou nada (o nihil da descrença quanto a uma vida no mínimo menos desigual)?
    Por último, o que exatamente houve com quem cantava e se emocionava com “Volver a los 17”? Para além das crenças perdidas, quais exatamente as crenças pós-anos 80? (Porque nem tudo me parece tanta descrença assim.) Todas essas questões são muitas e muito importantes para quem nasceu em 1974 e que, por inquietante coincidência, vem escutando Mercedes Sosa em filmes de Sodenbergh e também em arquivos mp3 nestes últimos dias – e soube da morte da cantora através deste blog querido. O tom confessional e a expressividade deste podcast, ao que me parece, no mínimo relativiza seu conteúdo semântico; ou será apenas impressão de quem, ansioso, quer ler nas entrelinhas e ouvir nos entressons?
    Grande abraço, cheio de ternura e de disposição ao pensamento crítico por estas paisagens.

    • Fernando,
      obrigado pelo comentário e pela disposição de ouvir e re-ouvir mesmo com eventuais (e fundas) discordâncias.
      Não creio que o anacronismo esteja em qualquer das hipóteses que levantou.
      Mas na mitologia simplista que move inúmeros discursos políticos na academia e que, em outro tom, pauta a atual política externa brasileira.
      Creio que o anacronismo está numa visão de mundo maniqueísta, que elege suspeitas lideranças, só considera a existência de duas possibilidades, as supõe necessariamente excludentes e crê que é preciso, diante delas, optar por um dos lados – independentemente do cinismo e do embuste que ele exiba.
      Abraços,
      Júlio

  2. Caro Júlio,

    A mim também maniqueísmos não me contentam, de modo que eu de fato posso condensar todas as questões anteriormente enumeradas (juro, não são meramente retóricas) nos versos:

    “Onde te ocultas, precária síntese,
    luz dormindo acesa na varanda?”

    Eu às vezes tenho a impressão de que o autoritarismo parece brotar de quaisquer planificações, segundo as quais só haja a estatística e outras armas quantificantes como modo de organizar a experiência humana, assim reduzida à ideia de “Homo economicus” – e isso tanto no modo liberal quanto nos esboços do socialismo realmente existente. Falanstérios ou planos quinquenais ou mercados-comuns ou economias-mundo me parecem impasses diante dos quais toda legítima demanda quanto a um cotidiano liberto do “tripalium” economicista (e da divisão esquartejante do trabalho, e dos esforços permanentes de guerra, e quejandos) resta utópica – quando não deveria. Mas se assim há uma questão de ordem ética por sob as ordens-do-dia práticas, como não insistir nas discussões de economia e de política externa capazes de refutar, a um tempo, apropriações do subsolo à Vargas e à Sete-Irmãs? (Esta, uma entre um milhão de outras questões prementes.)
    Se, diante da complexidade tecnocrática do sistema produtor de riquezas, o indivíduo já, há muito tempo, não pode posicionar-se adequadamente (como postulavam os enciclopedistas no XVIII), e se, por outro lado, não se é capaz de superar esse impasse senão com um domínio básico sobre tal compreensão, como pensar e propor mecanismos políticos libertários e democráticos quanto a uma minimamente justa distribuição de renda (e de saberes, e de estéticas)? Delegar à vanguarda do proletariado tal missão será (ao que me parece) tão inadequado quanto delegá-la à tecnocracia transnacional: então, que fazer? Onde (e quando, e como) encontrar meios para que o capital cultural possa distribuir-se, para que todos possamos refletir sobre tais dilemas e, assim, encontrar mecanismos políticos para decisões democráticas, as menos representativas, as mais diretas, dentro do possível? Estas me parecem questões decisivas no sentido de ultrapassar os dilemas dum latino-americanismo (e dum terceiro-mundismo) e também um colosso de tantos outros dilemas. (Mas superar tais dilemas não será, também, retomá-los, valorizando-os em seus questionamentos e apontando os limites de suas respostas – buscando outras e melhores respostas? Não caberá, à Antonio Candido, reconhecer a tradição, para ultrapassá-la em seus dilemas?)
    Quando eu contraponho, em meu comentário, latino-americanismo e Estado de Direito, eu não busco dicotomizar nem tampouco situar-me em nenhum dos pólos; apenas tenho pensado que em nenhuma das duas vias se vem a alcançar a “precária síntese”; e ainda assim não se trata de desrespeitar a defesa, por exemplo, de Norberto Bobbio (quem sou eu), a quem, se não me engano, pareceu que o campo socialista do pensamento muito ganharia em abandonar a recusa total de certos mecanismos “liberais”.
    Eu às vezes tenho a impressão de que tais discussões ético-políticas, poucas vezes rumaram para esforços de síntese, de 1914 para cá, a não ser no campo da estética (primeiro, no campo da produção e da recepção literárias, depois no campo da música e do cinema, para concordar com Glauber Rocha, se é que faço bem nisso). Ao que me parece, as discussões intelectuais, quando cada vez mais especializadas em campos disciplinares, tenderam ao hermetismo e / ou à excessiva especialização (para o bem e para o mal), enquanto que, nos campos da estética, a despeito das vogas estruturalistas, os esforços de síntese foram mais, digamos, democráticos e sintéticos. Por isso eu penso que os debates como este são tão vitais, hoje mais do que nunca. E por isso eu dedico tanta atenção a esforços como os deste blog (menos, entretanto, do que eu gostaria de dedicar – justamente por conta de cargas de trabalho excessivamente tiranas).
    Eu, ontem, encontrei, no “youtube”, um clip com Mercedes Sosa, Chico, Caetano, Gal e Milton Nascimento, cantando “Volver a los 17” no antigo programa da Globo. Aquilo me pareceu digno de rever na tela de LCD, porque nela Milton dançava dum modo afroamericano para além de dilemas ético-políticos; porque nela o tropicalismo de Caetano, sob o olhar dum Buarque de Holanda, me pareceu mais síntese e menos antítese, diante de um latino-americanismo pura e simplesmente à Vandré; porque o “criollismo” da Mercedes se contrapunha a um castelhano abaianado e sincopado na voz da Gal; e mesmo o falsete do Chico estava divino. Foi menos volver a 1917 e mais remeter a 2017.
    Grande abraço!

    • Fernando,
      certamente o melhor de tudo é rever Milton – o melhor de nossos cantores mais ou menos desde sempre.
      Obrigado pela dica.
      Abraços,
      Júlio

  3. Será que apenas os hermetismos pascoais,
    Os tons, os miltons, seus sons e seus dons geniais
    Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
    – e nada mais?

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