A viagem a Nápoles, de Sérgio Buarque de Holanda

 

A viagem a Nápoles  é um conto: a única ficção escrita pelo maior historiador brasileiro.

 

Sérgio Buarque de Holanda a publicou originalmente em 1931, na Revista Nova, e ela agora reaparece numa edição bem cuidada, com formato diferenciado e ótimos  desenhos do arquiteto Vallandro Keating.

 

Embora a quarta capa da nova edição apresente o conto como “surrealista”, é difícil enxergar qualquer influência do movimento francês. Não só porque em 31 o eco surrealista era ainda bastante sutil nas Américas. Mas sobretudo porque a história não se enquadra – felizmente – nos moldes rígidos do manifesto de 24 ou de alguns de seus mais notórios seguidores.

 

A viagem a Nápoles pode até ser um sonho e flertar um pouco com referenciais psicanalíticos – como gostavam os surrealistas. Só que o sonho de Belarmino, o protagonista, é carregado de aspectos lúdicos, de disposição para a brincadeira, e jamais assume o tom arrogante que tantos vanguardistas gostaram de ostentar em sua obsessão novolátrica. Menos do que onirismo, o conto é um causo – causo erudito, gozador e divertido.

 

O narrador invade a consciência do seu personagem principal e segue seu itinerário difuso por uma São Paulo que associa o arcaísmo oitocentista com as marcas novas do moderno. A São Paulo que ria quando a besta atrapalhava o andar do bonde ou quando alguma caipirinha desfilava vestida de Poiret.

 

Belarmino anda pela cidade e pelo tempo: tem sete ou oito anos, tem dois, tem quinze. Ele é também um sujeito bipartido: metade de sua consciência se apega aos medos e às fantasias infantis; a outra metade quer crescer. As duas freqüentam a mesma escola – na Praça da República – e ambas despencam de improviso em Nápoles, depois de atravessar um portão.

 

No ritmo aleatório e arbitrário dos sonhos, Nápoles é também o lugar do quase-alumbramento, do olhar surpreso pelo corpo feminino e mais velho, da hesitação, da incompletude. Do próprio corpo revelado como território desconhecido e inexplorado.

 

Em Nápoles ou em São Paulo, Belarmino caminha em torno de si mesmo. E o narrador, sempre brincalhão, se incumbe de não deixá-lo se levar muito a sério, de atenuar o peso das aflições ou da condição incerta de seu herói sem caráter. Até para mostrar que qualquer atribuição de caráter – para si ou para o outro, para o indivíduo ou para o coletivo – é, tal qual um sonho, artificial.

 

Não, não vou concluir que, cinco anos antes de publicar Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda testou ficcionalmente algumas idéias gerais do futuro clássico da historiografia. Nem vou dizer que ele aplicou ao conto a “atitude crítica perante a vida e o mundo”, gesto supremo do historiador. Essas idéias podem até estar lá; as preocupações intelectuais, também. Mas o que caracteriza A viagem a Nápoles é exatamente a despretensão, é o riso maroto que o narrador do conto deixa entrevisto em cada frase.

 

Epa, mas esse riso já não é a tal atitude crítica? É, acho que é. Então, o conto não se presta apenas ao divertimento do leitor? Não.

 

Mas veja bem: não é porque ele é mais complexo que você deve lê-lo com o polegar no queixo, ar sisudo, e tratá-lo como se fosse uma soturna peça acadêmica. Se fizer isso, poderá até escrever uma tese sobre a ficção de Sérgio Buarque de Holanda. Mas não terá entendido nada do conto.

 

Sérgio Buarque de Holanda. A viagem a Nápoles. São Paulo: Terceiro Nome, 2008

 

10 pensamentos sobre “A viagem a Nápoles, de Sérgio Buarque de Holanda

    • Pedrita,
      tudo bem?
      Recomendo muitíssimo.
      Sugiro que leia, de saída, Caminhos e fronteiras. É menos complexo do que Raízes do Brasil ou Visão do Paraíso e é fabuloso.
      Beijos,
      Júlio

  1. Ola Julio, tudo bem?

    Que grande surpresa descobrir que Sergio Buarque tambem trilhou os caminhos da ficção! Estou muito curioso e certamente vou conferir este conto – mas não vou escrever nenhuma tese.

    Gostaria tambem de fazer um comentário que não sei se é verdade ou apenas uma impressão, mas sinto que seus textos ultimamente (ao menos aqui no paisagens) tem se tornado mais bem-humorados (não que tenham sido austeros um dia), mais ironicos até. De toda forma, tenho gostado.

    Abraços,
    Danilo.

    • Danilo,
      tudo bem?

      Pois é, já tinha ouvido falar desse conto de SBH, mas nunca tinha lido. Vale a pena, até porque é muito divertido.

      Sinceramente não sei dizer se os comentários ficaram mais bem humorados ou irônicos. Talvez sim. Alterei um pouco a estrutura dos textos e o novo padrão pode ter explicitado mais ou dado mais espaço para esse tom. Além disso, tenho escrito menos comentários, em função da imensa quantidade de trabalho. E isso talvez me leve a alguma variação de tom.

      Abraços,
      Júlio

  2. Oi Júlio,

    Ótimo comentário e faço minhas as palavras do Danilo, os comentários estão mais descontraídos e acho que este seja o tom ideal neste espaço. Não faz muito tempo que li este conto e realmente o que encanta nele é a despretensão. Um belo trabalho.

    Abraços,

    Dennis.

  3. júlio, eu li a última convidada do josué montello e falei da obra no meu blog. comprei em um sebo e não achei em nenhuma lista. nem sei pq comprei. sei o que achei do autor na internet. beijos, pedrita

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