A casa deles confirma a célebre observação de Ricardo Piglia: todo conto conta pelo menos duas histórias.
Curioso, no livro de estreia de Ana Paula Pacheco, é notar como os vários relatos se sobrepõem, alternam-se na profundidade e na superfície da narrativa, encadeiam-se texto após texto.
As vinte e duas histórias que compõem o livro são, quase todas, bastante breves. Frases curtas, em ordem direta, em geral na primeira pessoa. Os narradores são solidamente construídos, embora vivam na corda bamba: a firmeza da escrita contrasta com o impasse da vida narrada.
É este intervalo entre as duas instâncias, texto e vida, que primeiro chama a atenção na prosa de Ana Paula: os contos expõem perspectivas, olhares assimétricos que seguem na diagonal e resultam, inevitável, em algum desacerto.
Uma poética do enviesamento, da inquietude. Os narradores vivem sob a luz do olhar alheio, mas não se espelham nele: prosseguem em tensão. Por isso, sua dicção é instável, errática, às vezes na fronteira da insanidade. Sua razão é porosa, oca, deslocada.
O registro de Ana Paula persegue o desassossego dos personagens com contundência e elegância. O riso, quando surge, é medido e as metáforas, nunca excessivas, reiteram o terceiro olhar, do autor, que não tenta se eximir, que se manifesta nos pequenos detalhes da escrita, na miudeza do quotidiano próprio tornado estranho. Junto com a angústia, há ironia.
A palavra que quase escapa da boca, toda hora, é deslocamento. E ela definiria o livro se já não estivesse tão banalizada.
É essa infixidez, de resto, esse estar do lado de fora, que justifica o título kafkiano do volume, em que um é o outro, em que nossa casa sempre é a deles. É essa instabilidade que permite aos vários níveis do texto, às suas diversas instâncias, alternar as histórias que se contam e as que se lêem. É assim que um conto pode parecer continuação do outro e sua contraface. Que o conjunto de contos pode resvalar para outras formas, como a poesia ou, por que não?, o romance: ambos se manifestam aqui e ali.
Piglia estava certo ao falar da pluralidade de relatos da forma breve. Esqueceu-se, porém, de dizer o óbvio: só ocorre quando o conto não é banal e a narração é precisa — caso das histórias de A casa deles.
Ana Paula Pacheco. A casa deles. São Paulo: Nankim, 2009